Ficha do Proponente
Proponente
- Carlos Eduardo da Silva Ribeiro (UFRGS)
Minicurrículo
- Doutorando em Comunicação na linha Culturas, política e significação, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com doutorado sanduíche no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista CAPES. Mestre em Sociologia na linha Estado, Sociedade e Cultura pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Bacharel em Cinema e Animação pela Universidade Federal de Pelotas.
Ficha do Trabalho
Título
- A cosmologia guarani-kaiowá e O coração da terra (Gomes e Gomes, 2020)
Formato
- Remoto
Resumo
- Partimos do curta-metragem Yvy Pyte – Coração da terra (Genito Gomes e Johnn Nara, 2020), realizado no tekoha Guaiviry (MS), em contexto de retomada. O filme homenageia postumamente o rezador guarani-kaiowá Valdomiro Flores, cuja voz em off conta como e onde surgiu o mundo: no Rio Paraguai, entre o Paraguai e o Mato Grosso do Sul. Como a cosmologia guarani-kaiowá pensa a sua relação com a terra e de que maneira a força dessa cosmologia reconfigura a história da retomada a partir do filme?
Resumo expandido
- Yvy Pyte – Coração da terra (Genito Gomes e Johnn Nara, 2020) é um curta-metragem realizado por jovens guarani com apoio do programa de extensão “Imagem, canto e palavra nos territórios Guarani e Kaiowá” (PPGCOM UFMG), no tekoha Guaiviry (MS), contexto de retomada. O filme homenageia o rezador Valdomiro Flores, falecido em 2017, cuja voz em off conta como e onde surgiu o mundo: no Rio Paraguai, entre o Paraguai e o Mato Grosso do Sul.
As duas margens do rio são a “terra dos dois pilares do mundo”. É justamente onde transitam os guarani kaiowá como “crianças que engatinham” sem se afastar do berço. É por serem do coração da terra e por estarem sempre aí que são “Ava puro de verdade”. Ava é “gente”. O inhambu, como Valdomiro ressalta, também vive no coração da terra, o que situa esse pássaro, e por extensão todos os seres contíguos à região, em uma comunidade originária em aliança com o próprio mundo. Ser ava puro é também paralelo ao apego à “palavra verdadeira”, repetida diariamente nos cantos como o festivo kotyhu, que se canta “para a roça crescer bem”.
Enquanto ouvimos Valdomiro sobre a origem da terra, as imagens operam na contiguidade entre o chão e o céu. A Geografia – do latim “descrição da terra” – parece modesta para a descrição do espaço-tempo kaiowá, que, como o filme indicia, embrenha o céu, que preenche a maior parte da tela, e a terra, tema da fala do rezador. Há, nessa cosmologia, uma continuidade vertical no cosmos, com pelo menos 3 outros planos de espaço-tempo (no qual a Terra seria o do meio), até, em outra versão, 10 patamares com 8 diferentes divisões do céu (PEREIRA, 2004).
As imagens ao longo de todo o filme são tomadas a partir de um carro em movimento na estrada, fitando fixamente o pôr do sol como um punctum (BARTHES, 1981). O campo da imagem diz tanto do movimento horizontal do carro quanto do trânsito virtual ao céu, em sentido vertical, visível e acessível aos xamãs como Valdomiro (PELBART, 2009; BRASIL, 2016). Esses movimentos remetem ao nomadismo guarani, ao “engatinhar” descrito por Valdomiro. O ponto fixo da câmera, que resiste ao movimento, evoca a obstinação religiosa, fundamental na resistência às condições a que são submetidos os kaiowá na luta pelas retomadas: obstinação que chamou atenção tanto de Vincent Carelli em Martírio (2016) quanto de Darcy Ribeiro (2002), que, frente à forte e permanente relação dos kaiowá com o divino, sugeriu que a vida terrena só lhes importava como plataforma para acessar um espaço mítico.
Por fim, evocamos muito equivocamente (VIVEIROS DE CASTRO, 2004) duas outras matrizes de pensamento: primeiro, o pós-colonial indiano Dipesh Chakrabarty e o livro “provincializar a Europa” (2007), que trata de contar uma outra História, não-eurocêntrica. No filme, em paralelismo, o Rio Paraguai não é simplesmente o “berço da terra”, mas o “o coração da terra”: um ponto vital, do qual a vida pulsa e emana para os arredores e que, assim, desloca a História. Os fazendeiros, como Valdomiro ressalta, vêm de outro lugar. Eu diria ainda: devêm outro lugar.
Outra relação, dessa vez tendendo à divergência: o Éden, na cosmologia judaico-cristã, trata-se tanto do ponto de origem como de um lugar não mais de direito dos humanos. Genesis é um mito de expulsão desse berço. Jeová diz a Adão após o pecado (BIBLIAON, 2022): “Com sofrimentos obterás do solo o teu alimento, todos os dias da tua vida. A terra produzirá espinhos e ervas daninhas”. O rezador kaiowá, por sua vez, não vive nem a condenação a uma terra maldita, nem a expulsão divina do território originário, nem o rompimento com o modo de vida que lhe é contíguo: “Nós não sabemos o que é dinheiro, vamos a qualquer lugar, e de qualquer lugar voltamos. Vamos até onde não tem fim”. A culpa e o pecado não se imbricam no tempo-espaço da gênese kaiowá: “Se você não se sente alegre, dá uma volta e volta”. Nesse eterno retorno, podem “bem viver”.
Bibliografia
- BARTHES, Roland. Camera Lucida. New York: Hill and Wang, 1981.
BIBLIAON. Bíblia Sagrada Online. Online. 2022. Disponível em: . Acesso em: 11 mai. 2022.
BRASIL, André. Ver por meio do invisível. Revista Novos Estudos, V. 35, n. 3. Cebrap: São Paulo. 2016. p. 125-146.
CHAKRABARTY, Dipesh. provincializing europe: Postcolonial Thought and Historical Difference. Princeton University Press, 2007.
PELBART, Peter Pál. Imagens do (nosso) tempo. In: FURTADO, Beatriz. Imagem contemporânea – Vol. 2. São Paulo: Editora Hedra, 2009.
PEREIRA, Levi Marques. Imagens kaiowá do sistema social e seu entorno. 2004. 449 p. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.
RIBEIRO, Darcy. Confissões. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectival anthropology and the method of controlled equivocation. Tipití: Journal for the Society of Anthropology of Lowland South America, v. 2, n. 1, 2004.