Trabalhos Aprovados 2021

Ficha do Proponente

Proponente

    Maria Bogado (PPGCOM/ECO/UFRJ)

Minicurrículo

    Desenvolve tese acerca de processos fílmicos no cinema brasileiro atual que desestabilizam noções convencionais de autoria e exploram a emergência de gestos coletivizados. Pesquisou epistemologias feministas, com publicações no Explosão Feminista (Companhia das Letras, 2018). Co-curou o evento de poesia, performance e música experimental Subcena, realizado no Audio Rebel (RJ). Criou e co-editou a Revista Beira até 2016. “Fazemos da memória nossas roupas” é o seu primeiro filme.

Ficha do Trabalho

Título

    O fazer-se: Lygia Clark e o cinema como produtor de gestos

Seminário

    Cinema experimental: histórias, teorias e poéticas

Resumo

    Pretende-se analisar os “Projetos vivenciais: filmes”, de Lygia Clark, de 1967 e 1968. Esses projetos consistem em quatro proposições, nas quais a artista pressupõe a utilização de tecnologias audiovisuais e tece diálogo direto com formas consolidadas na história do cinema. Busca-se verificar como seu pensamento conceitual e processos de arte e vida são fecundos para pensar produções cinematográficas atuais que, mais do que no acabamento de produtos fílmicos, investem na produção de relações.

Resumo expandido

    Lygia Clark chegou a elaborar projetos que envolvem o campo cinematográfico, mas nunca finalizou um filme. Sua trajetória, marca, no Brasil, a passagem da arte moderna para a arte contemporânea. Um dos pontos principais dessa transição é o deslocamento da importância do produto para o processo, assim como da centralidade de um público receptor para o fortalecimento das experiências e relações inter-individuais estabelecidas entre os participantes das ações artísticas (DUARTE, 2015). Passando pelas esculturas, arquiteturas e, por fim, para a pura mediação dos atos, abre-se ao toque e à relação. Abandona, por fim, um paradigma “formal-artístico” (PEDROSA, 2006, p.29) para alcançar uma abordagem “estético-vital” (Idem). Importa os efeitos das experiências na vida dos participantes, operando deslocamentos nos campos perceptivos e subjetivos, o que potencialmente pode revelar novas formas de construir comunidade.

    Seus “Projetos vivenciais: filmes”, de 1967 e 1968, consistem em quatro proposições: “Filme sensorial”, “O homem no centro dos acontecimentos”, “Convite à viagem” e “Western”. As duas primeiras se concentram em ações individuais, enquanto as últimas pressupõem coletividades. Em nenhum dos casos se trata de procedimentos para alcançar um filme como produto final, mas de processos que tem como efeito a produção de experiências que deslocam os corpos das suas formas habituais de percepção. Ao comentar um desses projetos, Lygia sintetiza com rigor: “objetivo do filme: por uma precisa deslocação da imagem, tomamos consciência dos gestos e das atitudes do cotidiano” (CLARK, 2015., p.108). É possível notar como essa consciência renovada também implica a remodulação das formas de estar junto e contornar os limites entre um e outro indivíduo.

    Dos “projetos vivenciais” a serem analisados, é interessante notar como alguns são agudamente abertos às interferências do mundo na relação com o corpo que os engendra, enquanto os outros já reivindicam amarras narrativas mais explícitas, bem como ações notadamente ficcionalizadas. Diferente de outras proposições suas em que se criam situações extraordinárias mediadas por objetos radicalmente inventivos, mesmo quando realizados com materiais precários, “O homem no centro dos acontecimentos” e “Filme sensorial” acessam um campo de ações e espaços prosaicos, desde atividades matinais corriqueiras a caminhadas pelo centro das cidades. Os distintos procedimentos também variam na forma em como solicitam a sensorialidade dos participantes, destacando-se por não se restringirem à centralidade do campo visual e auditivo. Especialmente nas proposições coletivas, o corpo é implicado de modo mais amplo e integrado. “Convite à viagem” convoca o paladar e olfato, uma vez que comidas e bebidas integrariam a experiência, além de pressupor momentos de dança. Já “Western” conta com a invasão presencial de personagens de um filme desse gênero dentro de uma sala de projeção, autorizados a jogar tinta vermelha na roupa dos espectadores, cujas reações seriam imprevisíveis.

    Os procedimentos expostos nesses projetos buscam desfazer as separações entre sujeito e objeto, enfraquecendo o primeiro termo, ironicamente, afastando-o de um suposto “centro dos acontecimentos”. É com um infinitivo que Lygia expressa esse pensamento um tanto fora do sujeito. Declara em seus diários, a necessidade de perceber “o fazer-se” dos filmes, que não lhe interessam a partir de uma perspectiva formalista. Quando um gesto emerge em um processo de filmagem, a quem pertence? Àquele que segura a câmera, àquele que dirige a cena, ou ao corpo que assumiu e suportou um movimento singular irredutível à significação? Em processos tradicionais, se poderia dizer que o gesto é fruto da astúcia de um diretor ou da sensibilidade aguçada de um ator. Os processos de Lygia, ao contrário, buscam desfazer essas delimitações e apresentar as ferramentas cinematográficas como constitutivas de um meio no qual os gestos se tecem impróprios, em relação.

Bibliografia

    AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo. In: ______. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.
    CLARK, Lygia. Lygia Clark: uma retorspectiva. Org. DUARTE, Sérgio; SCOVINO, Felipe. São Paulo: Itaú Cultural, 2015.
    DUARTE, Paulo Sérgio. “O ‘estilo’ tardio de Lygia Clark”. In Lygia Clark, uma retrospectiva (catálogo).São Paulo: Itaú Cultural, 2015.
    LEANDRO, Anita. “Mouvement néo-concret, Cinéma Novo et constructivisme.” In: Claude Murcia. (Org.). Cinéma, art(s) plastique(s). Paris: Harmattan, 2001.
    PEDROSA, Mario. “A obra de Lygia Clark”. In Lygia Clark, da obra ao acontecimento. (catálogo) São Paulo, 2006.