Ficha do Proponente
Proponente
- Vicente Nunes Moreno (UNISINOS)
Minicurrículo
- É mestre em Comunicação Social pela PUCRS, com pesquisa voltada para o campo da narratologia e do estilo cinematográfico. Graduou-se em Realização Audiovisual pela UNISINOS (2005), curso onde atua como coordenador (desde 2019) e professor de montagem, roteiro e direção (desde 2011). Foi também professor convidado na FAP/UNESPAR e no Curso de Especialização em Cinema da UNISINOS. Como cineasta, atua como diretor, roteirista e montador, tendo participado de mais de 70 produções audiovisuais.
Ficha do Trabalho
Título
- A imersão na escuta e a deformação do real em Lucrecia Martel
Seminário
- Teoria de Cineastas
Resumo
- A partir dos filmes e das falas de Lucrecia Martel, a comunicação ensaia um entendimento do que seria o olhar teórico da cineasta para o cinema e sua relação com o real. Com uma definição particular sobre a noção de ponto de vista, Lucrecia refuta a vocação ilusionista do cinema e propõe em sua obra uma espécie de realismo impressionista, onde a visão é submissa à escuta, numa tentativa de desestruturação e distorção subjetiva da realidade.
Resumo expandido
- Essa comunicação segue a linha de pesquisa proposta no percurso do ST Teoria de Cineastas, que expande o potencial do filme como forma de pensamento e atribui um papel central ao cineasta como produtor de teoria do cinema, não só através de textos formais, mas também através de suas falas, interações e processos (GRAÇA, BAGGIO, PENAFRIA, 2015). A cineasta a ser estudada e ouvida é Lucrecia Martel, que produziu relativamente poucos filmes, sempre em processos longos e cuidadosos, e não tem grandes textos publicados. No entanto, sua obra é bastante singular e deixa transparecer uma forma original de se pensar o cinema, o que fica mais nítido a partir de suas falas, em particular as que produziu durante uma de suas passagens ao Brasil, na segunda edição do projeto Ficção Viva em Curitiba, do qual tive o prazer de participar como ouvinte.
Lucrecia enxerga o cinema como o exercício de, através do artifício da narrativa, ultrapassar uma barreira intransponível, a da solidão do corpo, subvertendo-a através da partilha de um ponto de vista singular. A problemática do ponto de vista é central aqui, mas não segue a prolífica produção dos estudos narratológicos sobre o assunto (embora o atrito com esses não deixe de ser bastante interessante). Lucrecia rejeita a noção ótica-visual do “ponto de vista”; defende que este deveria ser entendido como a organização (ou deformação) particular que um sujeito tem do universo percebido em seu corpo (MARTEL in MUNHOZ e URBAN, 2013).
Ela descreve o realismo ilusionista como um “inimigo à espreita” que nos quer fazer acreditar que não tem um ponto de vista e que, em seu “retrato” da realidade, vai moldando-a como se “só houvesse um caminho”. Nesse sentido, defende a preservação da ambiguidade do real, o que a aproxima de certa maneira a Bazin, ao menos nesse sentido bem específico. No entanto, ao contrário de Bazin, em vez da revelação do real, acredita na deformação do real como o caminho a ser valorizado. Cita inclusive a influência que um quadro de Van Gogh na parede da casa das tuas tias teve em sua trajetória. Ao ver aquela paisagem distorcida pelas pinceladas instáveis, conta que tinha a impressão de que o quadro havia sido pintado debaixo d´água. Água que está na fluidez buscada em seus filmes. Não uma fluidez da imagem, essa é, pelo contrário, bastante rígida, num controle até exacerbado do enquadramento e da mostração filmográfica. A fluidez viria do som, da escuta – esse sentido através do qual primeiro conhecemos o mundo, ainda imersos no útero de nossas mães. O argumento de Martel, e que se manifesta de forma contundente em todos os seus filmes, é de que nessa missão de desestruturar o percebido, desarmar o que já foi visto, o som seria uma via muito mais expressiva do que a imagem, por ser em sua natureza mais abstrato. É a sonoridade do mundo que serve como diapasão para Lucrecia afinar seu realismo. Como na hipnose, o ritmo e a cadência da fala tornam-se mais importantes que o sentido. A energia da entonação excede a racionalidade e apela à nossa intuição.
Derivada dessa ideia de ponto de escuta e valorização do som sobre a imagem, podemos perceber uma recusa não-declarada ao ponto de vista ótico dos personagens em seus filmes. A ocularização interna primária, como descrita por Jost (1987), e mesmo a ocularização interna secundária e o famoso binômio rosto-plano de olhar (tão caro ao modo de narração clássico) são evitados a todo custo, o que vai ao encontro da sua visão teórica acerca da não-simplificação do real. Chama a atenção esse contraste entre uma restrição rígida do olhar em prol de uma fluidez “caótica” da escuta. Podemos especular que essa estratégia tem como objetivo não só a preservação da ambiguidade, mas também a tentativa de expressão desse ponto de vista (ou ponto de fala/escuta), de comunicar uma angústia própria de seus personagens e, em última instância, dela própria enquanto artista.
Bibliografia
- BAZIN, André. O cinema – ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.
CHION, Michel. A Audiovisão. Som e Imagem no cinema. Lisboa: Texto & Grafia, 2011.
GAUDREAULT, André. From Plato to Lumière: Narration and Monstration in Literature and Cinema. Toronto: University of Toronto, 2009.
GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. 3.ed. Lisboa: Vega, 1995.
GRAÇA, André Rui; BAGGIO, Eduardo; PENAFRIA, Manuela. Teoria dos cineastas: uma abordagem para a teoria do cinema, Revista Científica/FAP, Curitiba, v.12, p. 19-32, jan./jun. 2015.
JOST, François. L’Œil-caméra. Entre film et roman. Lyon: Presses universitaires de Lyon, 1987.
MARTEL in MUNHOZ, Marcelo; URBAN, Rafael (Orgs.) Conversas cobre uma ficção viva. Curitiba: Imagens da Terra, 2013.
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico – a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2005.