Trabalhos Aprovados 2021

Ficha do Proponente

Proponente

    Ana Luiza Rocha de Siqueira (UFMG)

Minicurrículo

    Ana Siqueira atua em curadoria, pesquisa e tradução. Curadora e coordenadora de programação do FestCurtasBH – 15ª e 16ª (cocoordenação) e a partir da 19ª edição (2013-2014 e desde 2017). Foi programadora do Cine Humberto Mauro (2008-2009) e da mostra de cinema infantil do Festival SACI (2011-2017). Mestre em Comunicação Social pela UFMG, onde integra o grupo de pesquisa Poéticas da Experiência.

Ficha do Trabalho

Título

    A cena da tradução em Uma vez entrei num jardim, Kurdish Lover, Stolat

Resumo

    O que acontece – ou pode acontecer – quando o cinema abriga o encontro entre pessoas de mundos e línguas distintos, sustentando e acolhendo as diferenças que, em cena, se apresentam? A partir de três documentários – Uma vez entrei num jardim, Kurdish Lover e Stolat – pensamos comparativamente como a relação entre diferentes idiomas (e a tradução, não necessariamente verbal, que ele provoca) são abrigados no interior de suas escrituras.

Resumo expandido

    O que acontece – ou pode acontecer – quando o cinema abriga, nas imagens, nos sons, nas conversas trocadas (e mesmo no silêncio e na incompreensão do que se diz) o encontro entre pessoas de mundos e línguas distintos, sustentando e acolhendo as diferenças, sem buscar apaziguar a alteridade que ali, em cena, se apresenta? A partir de três filmes documentários – Uma vez entrei num jardim (Avi Mograbi, 2012), Kurdish Lover (Clarisse Hahn, 2010) e Stolat (Pengau Nengo, Martin Maden e Bike Johnston, 1985) – pensamos comparativamente como o encontro entre diferentes idiomas (e a tradução, não necessariamente verbal, que ele provoca) são abrigados no interior de suas escrituras.

    Em Uma vez entrei num jardim, a tradução está no cerne das conversas – que transitam entre o árabe e o hebraico – mantidas entre o diretor Avi Mograbi e seu professor de árabe Ali Al-Azhari. É ela que permite a vizinhança – tensa e conflituosa – entre os territórios (geográficos e imaginários) aos quais os dois pertencem: Palestina e Israel. Acompanhamos a negociação que torna possível esse filme entre dois velhos amigos e, ainda, se formos adiante, dois povos que dividem e disputam um mesmo território, sem no entanto compartilhar crenças, percepções de mundo, sequer o alfabeto.

    Em Kurdish Lover, é a cineasta ocidental, francesa, que irá em direção ao “outro”, partindo para as montanhas do Curdistão turco encontrar a família de seu companheiro, que conecta esses dois universos tão díspares. A realizadora filmará quase sempre “às surdas”, num acesso tanto aos espaços exteriores da comunidade quanto aos mais íntimos da família, e é a ausência da tradução entre o curdo e o francês – ou sua existência parcial e precária – que levará a diretora a buscar os recursos para, ainda assim, compor uma cena em comum com os parentes de seu companheiro.

    Já em Stolat, os próprios cineastas são os “outros” da cultura dita ocidental. Os três jovens cineastas papuas pretendem filmar a velhice na França, mas logo esbarram na barreira linguística (que deixa entrever outras ainda mais acentuadas), que parece no primeiro momento intransponível, mas que vai se revelar, finalmente, secundária, ao encontrarem um idoso que lhes é em (quase) tudo diferente. Sem que se apreenda, de parte a parte, nem o inglês nem o polonês (ou o francês e a língua papua), os jovens cineastas adentram o cotidiano e a história do velho Moltavsky.

    Se a diversidade linguística é produtiva para que cada uma dessas obras se desenvolva, constituindo-as por dentro, há também entre elas numerosos contrastes. Realizadas por cineastas de diferentes origens, em condições diversas de produção e mediação, e divergindo na maneira como se dá a diferença linguística e sua lida pelo filme, nos deparamos, finalmente, com importantes pontos de convergência. Sem tomar a cena da tradução e a hospitalidade – com seus graus variados e inerentes de hostilidade – como figuras apaziguadas, os três filmes apostam na vizinhança, no estar junto: um ao lado do outro, um diante do outro. Estão, todos eles, empenhados em “diferenciar indiferença, inserir diferença onde a indiferença era presumida” (Viveiros de Castro, 2004: 19) e criar abertura onde a animosidade era pressuposta.

    Atentas à expressividade própria do cinema, nos voltamos para a incidência da tradução (ou da diferença linguística) na própria forma do filme, em seu processo, como experiência de tradução em ato. Mantemos no entanto a sensibilidade para outros campos do conhecimento que se dedicam, em seus próprios termos, a essa prática, notadamente a literatura (na letra traduzida) e a antropologia (na translação cultural), de que a tradução é considerada tarefa distintiva – o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro chegará a afirmar que, nesta disciplina, a comparação serve à tradução e não o contrário, como é comumente pensado: para ele, a antropologia “compara para traduzir”. Estarão também atreladas, no cinema, as tarefas de comparar e traduzir?

Bibliografia

    BENJAMIN, Walter. A tarefa-renúncia do tradutor. In: Castello Branco, L. (Org.) A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro traduções para o português. Trad. Susana Kampff-Lages. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2008.

    BERMAN, Antoine. A tradução e a letra, ou, O albergue do longínquo. Trad. Marie-Helène Catherine Torres, Mauri Furlan, Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras/PGET, 2007.

    HALL, Stuart e MAHARAJ, Sarat. Modernity and difference: a conversation between Stuart Hall and Sarat Maharaj. London: Institute of International Visual Arts, 2001.

    VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectival Anthropology and the Method of Controlled Equivocation. In: Tipiti: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America, 2004.