Trabalhos Aprovados 2021

Ficha do Proponente

Proponente

    Ilana Feldman (USP)

Minicurrículo

    Ilana Feldman é pesquisadora, crítica e ensaísta. Tem pós-doutorado em Meios e Processos Audiovisuais pela USP e em Teoria Literária pela UNICAMP. É doutora em cinema pela Escola de Comunicações e Artes da USP, com passagem pelo Departamento de Filosofia, Artes e Estética da Universidade Paris 8.

Coautores

    Maria Cristina Franco Ferraz (UFRJ)
    Ericson Telles Saint Clair (UFF)

Ficha do Trabalho

Título

    Da colonização do sono aos sonhos do corpo: “A febre”, de Maya Da-Rin

Seminário

    Cinema Comparado

Resumo

    A partir de uma perspectiva histórica e genealógica, em cotejo com a antropologia, filosofia, literatura e artes visuais, visamos investigar a aliança entre o cinema e a potência política dos sonhos em “A febre” (2019), primeiro longa-metragem de ficção de Maya Da-Rin.

Resumo expandido

    Na passagem do século XIX ao XX, coincidindo com a emergência do cinema, os limiares entre sono e vigília foram objeto de especulação e problematização. Os processos de rotinização e automatização da vida, vinculados ao desenvolvimento do capitalismo de base industrial e ao que Jonathan Crary chamou de “industrialização dos regimes de contemplação” suscitaram reflexões, como as de Gabriel Tarde, que descreveu a vida social como um estado sonambúlico. A confluência entre estado social e estado hipnótico também se manifestara em pinturas da época, como em obras de Georges Seurat e em diversos quadros de Edvard Munch, nos quais corpos desprovidos de força ocular e vital assombram as cenas.

    Como contraponto a essa indiscernibilidade entre sono e vigília, os sonhos parecem abrigar formas de resistência que o cinema tanto tematizou quanto realizou. Já na virada do século XX ao XXI, conforme as perspectivas apresentadas por Crary em “24/7 – capitalismo tardio e os fins do sono”, as fronteiras do sono passam a ser objeto de pesquisa e disputa com vistas à colonização desse estado do corpo, por ora incontornável, de escape e liberdade. Que os sonhos – como a imaginação – tenham tal potência política já foi ressaltado tanto por Hannah Arendt quanto por Philip K. Dick, que, na conferência “Homens, androides e máquinas”, afirmou: “São os nossos sonhos que nos transformam de máquinas em seres inteiramente humanos”. Inevitável lembrar as cenas finais de Blade Runner, que se apoia no livro de Philip Dick: “Androides sonham com ovelhas elétricas?”, base de uma das cenas mais icônicas do filme de 1982.

    Tal aliança entre o cinema e a potência política dos sonhos será o ponto de partida para a discussão acerca de “A febre” (2019), primeiro filme de ficção de Maya Da-Rin, cujo protagonista, Justino, é de origem indígena. Viúvo, ele vive na periferia de Manaus com a filha enfermeira e trabalha como vigilante no porto de cargas da cidade à beira no Rio Negro, onde assiste diariamente à chegada de imensos containers carregados de peças de reposição e mercadorias vindas da China, em um regime de trabalho fastidioso, solitário e sonambúlico. Não demora, a vigília necessária começa a dar lugar a uma estranha febre e ao sono no local de trabalho, que é logo interpretado pela empresa como distração e insubmissão – tal como o índio “preguiçoso” do início dos tempos coloniais. Mas, o semblante pacífico e a presença silenciosa expressa pela solidez do corpo de Justino logo revelam uma insidiosa e discreta resistência: fora dali, com o corpo febril, Justino sonha.

    De sonâmbulo do mundo do trabalho durante o dia, Justino passa a se reconectar com seu corpo e suas origens durante a noite. Desconfia da medicina, que quer tratar sua febre, enquanto seus sonhos, produções tão particulares como coletivas, o ancoram novamente em sua comunidade. Para Justino, assim como para o pensador indígena Ailton Krenak, os sonhos não se reduzem à experiência cotidiana de dormir e sonhar, mas abarcam um “exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as escolhas do dia a dia”, isto é, uma disciplina de autoconhecimento e prática ética na interação com o mundo e com a natureza.

    Como vemos em “A febre”, por meio de sua delicadeza calourenta e úmida, de sua serenidade diuturna imersa em gestos cotidianos, a figura do sonho – uma forma de imaginação política – torna-se disparadora de um novo regime de sensibilidade, de novas modalidades de afeto, orientando as ações de Justino e operando uma transformação na própria realidade. Testemunhos da impropriedade de dicotomias caras ao paradigma etnocêntrico, como civilização e barbárie, natureza e cultura, corpo e espírito, pares então indissociáveis para a cosmologia perspectivista que “A febre” se propõe a encenar, os sonhos de Justino resguardam a mesma opacidade de que o filme é constituído. Nessa reversão de pontos de vista, os “outros” – selvagens, predadores, incapazes de sonhar o futuro – somos nós.

Bibliografia

    CASTRO, Eduardo Viveiros de. “Perspectivismo”. In: Metafísicas canibais. São Paulo: Ubu, 2018.
    CRARY, Jonathan. 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Ubu, 2016.
    DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. São Paulo: Ed. 34, 2020.
    FELDMAN, Ilana. “De Holocausto (1978) a Chernobyl (2019): o que pode o audiovisual face a passado traumático e a um futuro ameaçado?” In: Alceu, PUC-Rio, julho 2021, no prelo.
    FERRAZ, Maria Cristina Franco; SAINT CLAIR, Ericson. Para além do Black Mirror: estilhaços distópicos do presente. São Paulo: n-1, 2021.
    KRENAK, Ailton. “Sonhos para adiar o fim do mundo”. In: A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
    _______. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
    RIBEIRO, Sidarta. O oráculo da noite: a história e a ciência do sonho. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
    ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: N-1, 2018.