Ficha do Proponente
Proponente
- Lennon Pereira Macedo (UFRGS)
Minicurrículo
- Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre e Bacharel em Comunicação pela mesma instituição. Faz parte do Grupo de Pesquisa Semiótica e Culturas da Comunicação e do Grupo de Pesquisa Agenciamentos da Imagem. Dedica-se ao estudo dos atravessamentos entre semiótica, teoria do cinema e teorias da comunicação.
Ficha do Trabalho
Título
- Da ideia de conversação nos filmes de Júlio Bressane
Seminário
- Teoria de Cineastas
Resumo
- Propõe-se um estudo semiótico da obra de Júlio Bressane com vistas a descrever uma ideia singular em cinema que inscreve a conversação cinematográfica como uma espécie de continuum erótico-político da voz. Identificou-se nos atos de fala dos filmes O gigante da América (1978), Filme de amor (2003) e Cleópatra (2007) dois tipos de operações: (1) um deslocamento da significação verbal em direção à sua materialidade fônica; (2) uma dissolução dos sujeitos da conversa num mesmo monólogo variável.
Resumo expandido
- Percebe-se sem receio que a cinematografia de Júlio Bressane é povoada por atos de fala muito curiosos, conversas sem interlocução, diálogos monológicos, entonações inverossímeis e outras tantas gagueiras verbovocais. É como se o cineasta pensasse uma outra conversação possível a partir do cinema, distinta daquela evocada pelas teorias da ação comunicativa, segundo as quais a conversa não é senão um parlamento de sujeitos identitários com vias de produzir consensos sobre o mundo. Para Bressane, a conversa é um conluio secreto, um jogo erótico de desentendimento que traduz palavras em corpos dissonantes. Descrever o modo como uma ideia singular de conversação se expressa em distintos atos de fala nos filmes de Bressane é o objetivo do presente estudo.
Essa ideia atualiza-se em, pelo menos, dois tipos de operações. O primeiro é o deslocamento da significação verbal na direção de sua materialidade fônica. Se tomarmos como premissa o pensamento estético-político de Jacques Rancière (2018), veremos que uma cena de dissenso se instaura quando da necessidade de verificação de igualdade insurge uma disputa pelo logos. Essa disputa faz com que emissões sonoras antes ouvidas como mera phoné, ou seja, pura voz ou ruído, sejam escutadas como palavra, criando um desentendimento a respeito do sentido da palavra e do que significa compreender o sentido da palavra. Ora, a política da conversação bressaneana toma outro caminho: o efeito de igualdade e a desidentificação dos sujeitos não se produz a partir da tomada do logos por parte dos “sem parte” da partilha, mas sim pela expressão de um devir-fônico da palavra que dissolve as personagens num continuum erótico.
Daí a proliferação de diálogos entrecortados por ofegações, gemidos, sussurros, vagarosidade das pronúncias, formas de adiar o logos (especialmente em Filme de amor [2003], mas não só), assim como de estratégias de inversão de vozes, ou mesmo de produção de um sotaque impossível, como em Cleópatra (2007), que inscrevem um ruído vocal entre a personagem e sua fala. Tal operação semiótica elabora a seu próprio modo o problema do fonologocentrismo denunciado por Jacques Derrida (2017), a dizer, o problema lógico-político que a metafísica ocidental cria quando apresenta o signo como um significante fônico material submisso a um significado lógico transcendental. A phoné de Bressane é antes de mais nada um ato de inscrição corpórea, uma fonografia cujo logos são as transformações incorpóreas dos sujeitos descontínuos em uma única continuidade erótica, pensando o erotismo justamente como esse desejo de continuidade (BATAILLE, 1987).
O segundo tipo de operação corresponde à dissolução dos sujeitos da conversação num mesmo monólogo variável, de modo que a alternância de falas entre as personagens não toma a forma da troca de opiniões e disputa por sentidos, mas sim de um revezamento de recitação. Assim, as personagens são meras funções de verbalização do mesmo texto, não há divisão de um todo em partes assimétricas, mas modulação de um todo aberto e múltiplo que diferencia-se de si atualizando-se em distintos atos de fala. É o entrelaçamento dos monólogos de Filme de amor, mas também a irônica desmontagem da situação pergunta-e-resposta de O gigante da América (1978). Aprochega-se aqui a conversa bressaneana de uma outra conversa, aquela que Gilles Deleuze e Claire Parnet (1998) definem como um devir que corre entre dois, uma dupla captura dos corpos na direção simultânea de um devir-X de Y e de um devir-Y de X. A continuidade erótica se expressa, então, nesse acoplamento incorporal das personagens por meio do monólogo variável.
Portanto, neste estudo ainda inicial da obra de Júlio Bressane, descreveremos algumas regularidades de atos de fala nos filmes Cleópatra, Filme de amor e O gigante da América de modo a compreender a ideia bressaneana da conversação como um continuum erótico-político da voz no cinema.
Bibliografia
- BATAILLE, G. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.
DELEUZE, G. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2015.
DELEUZE, G. What is the Creative Act? In: DELEUZE, G. Two Regimes of Madness: Texts and Interviews (1975-1995). Los Angeles: Semiotext(e), 2006, p. 312-324.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia?. São Paulo: Ed. 34, 1992.
DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998.
DERRIDA, J. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2017.
RANCIÈRE, J. O desentendimento. São Paulo: Ed. 34, 2018.