Ficha do Proponente
Proponente
- mariana angelito bessa de souza (UFF)
Minicurrículo
- É mestranda do PPGCine-UFF onde pesquisa cinemas africanos, com foco em mulheres como figuras dramáticas. Atua desde 2010 no setor audiovisual, quando ingressou no curso de cinema da Universidade Federal Fluminense, tendo exercido funções dentro das áreas de produção de set e festivais, direção, montagem e edição. Idealizou e produziu dois curta-metragens, Saturno (2012) e TUDO QUE É SÓLIDO DESMANCHA NO AR (2019). Fez intercâmbio acadêmico em 2015 para Universidade Da Coruña, com apoio da UFF.
Ficha do Trabalho
Título
- Mossane e o Mulherismo Africana
Seminário
- Cinemas negros: estéticas, narrativas e políticas audiovisuais na África e nas afrodiásporas.
Resumo
- A partir da análise do filme Mossane (Safi Faye, Senegal, 1996) e sua estrutura narrativa, pretende-se apontar, neste artigo, certas aproximações da obra com o arcabouço conceitual do mulherismo africana, termo cunhado por Clenora Hudson-Weems em 1982. A intenção é trazer para análise as confluências entre o corpo fílmico de Mossane e o corpo teórico mulherista, fundamentando um filme africano junto à uma conceituação igualmente afrocentrada.
Resumo expandido
- Mossane é a única obra de ficção de sua realizadora, Safi Faye, que na ocasião da filmagem já possuía extensa filmografia enquanto documentarista. O filme narra a vida da personagem que dá nome à obra: uma adolescente de 14 anos que vive em um pequeno povoado senegalês. Mossane vive a tensão de ser apaixonada por um homem com quem não pode casar e de ter de casar com um homem por quem não é apaixonada. Pelo que se pode depreender do filme, a comunidade tinha sua ideia de casamento pautada não pelo amor, mas pela permuta entre famílias. A menina nasce prometida a um casamento que não envolve apenas ela mesma, mas uma série de pessoas – seus familiares, seu povoado. Como recusar o dote se ele melhora a vida de uma comunidade inteira?
A personagem principal, a seu modo, confronta a estrutura, força uma transformação. É uma personagem que carrega em si uma alegoria do devir feminino africano, que tem suas vontades suprimidas pela tradição e/ou pela colonialidade. Um corpo de mulher negra que sintetiza a contradição de ser excessivamente desejada e, ao mesmo tempo, constantemente desrespeitada, oprimida e silenciada. Safi Faye traz, em sua obra ficcional, uma narrativa que faz menção à suas origens, tratando da subjetividade das mulheres de origem rural e africana.
O conceito mulherismo africana (o termo original é womanist afrikana) é de autoria de Clenora Hudson-Weems, pesquisadora estadunidense, que o apresentou a primeira vez em 1982. Foi cunhado para falar da experiência da mulher negra, seja no continente ou na diáspora, e é autoexplicativo ao propor que essas mulheres conceituem sua experiência e caminhem para um movimento emancipador de seus corpos. No livro “Mulherismo Africana: Recuperando a nós mesmos” a autora faz uma veemente defesa da necessidade de se desvincular do feminismo por ser este “um conceito que tem sido alheio às condições das mulheres Africana desde a sua criação” (HUDSON-WEEMS, 2020).
A inauguração do termo é bem-vinda não só pela questão da diferenciação em relação à epistemologia feminista, mas também pelo fato de que mulheres racializadas passaram por um processo de zoomorfização (NOGUERA, 2014) oriundo da escravidão, e se autonomear como mulher, e não como “fêmea”, é uma diferenciação importante. Do mesmo modo, ter um arcabouço teórico que se proponha à dar conta das demandas específicas do grupo social das mulheres africanas e afrodiaspóricas é de suma importância para os debates de raça e gênero. Não é mais cabível requentar respostas do Norte Global para os problemas do Sul Global. O mulherismo africana ganha um crescente destaque no Brasil justamente por se tratar de uma perspectiva afrocentrada no campo dos debates de gênero.
O entendimento de que a obra de Safi Faye seja alinhada ao pensamento mulherista se dá pelo fato deste abarcar questões de gênero que são intrínsecas ao continente africano. A matrilinearidade presente no filme é explicitada principalmente pela relação de Mossane com sua mãe. Ainda que seja uma opressão, a questão pode ser entendida como um problema matrilinear, e não de ordem patriarcal. A problemática aponta mais em direção à comunidade, à maternidade, a questões culturais que culminam no casamento obrigatório.
Em entrevista para Nicholas Elliot na Cahiers du Cinema (ELLIOT, 2018), a realizadora Safi Faye nega ser feminista, já que vem de uma sociedade matriarcal na qual as mulheres vivem em igualdade com os homens (quando não em posição superior). Ainda que as demandas do feminismo sejam importantes a nível global, não é um problema pensar que talvez os feminismos não deem conta das perspectivas, pluralidades e discursos das mulheres não-brancas. Isso é uma pauta importante no campo do audiovisual, mas também um tema caro ao próprio debate feminista. A intenção dessa investigação é justamente analisar um filme africano com uma estrutura epistêmica que lhe seja compatível, ao invés de comprimir a narrativa do filme para encaixá-lo nas estruturas teóricas ocidentais.
Bibliografia
- BARLET, Olivier. Interview with Safi Faye. Cannes, 1997. Disponível em: http://africultures.com/interview-with-safi-faye-by-olivier-barlet-5283/. Acesso em: 07/02/2021
ELLIOTT, Nicholas. Safi Faye: L’Afrique universelle–entretien avec Safi Faye. Cahiers du cinema, n. 747, p. 90-95, 2018.
FESTIVAL DE CURTAS BH. Catálogo FestcurtasBH: Safi Faye, pioneira em movimento. 2018. Disponível em: http://www.festivaldecurtasbh.com.br/wp-content/uploads/2018/08/20_FESTCURTASBH_online.pdf. Acesso em: 02/05/2021
HUDSON-WEEMS, Clenora. Mulherismo Africana: Recuperando a nós mesmos. São Paulo. Editora Ananse, 2020.
NJERI, Aza; RIBEIRO, Katiúscia. Mulherismo africana: práticas na diáspora brasileira. Currículo sem fronteiras, v. 19, n. 2, p. 595-608, 2019.
NOGUERA, Renato. O Ensino de Filosofia e a Lei 10.639. Rio de Janeiro: CEAP, 2011.
OLIVEIRA, Janaína. Mulheres de Imagem: Reflexões sobre o cinema africano no feminino. In. HOLANDA, Karla (org.). Mulheres de cinema. Rio de Janeiro: Numa, 2019.