Trabalhos Aprovados 2021

Ficha do Proponente

Proponente

    Vitor Zan (UFMS)

Minicurrículo

    Vitor Zan é mestre e doutor em estudos cinematográficos e audiovisuais pela universidade Paris III. É professor do curso de audiovisual da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Suas pesquisas são dedicadas ao cinema brasileiro, além de atuar na captação e pós-produção sonora.

Ficha do Trabalho

Título

    Antigone (Sophie Deraspe, 2019): tragédia moderna ou drama social?

Resumo

    As escolhas efetuadas por Sophie Deraspe no filme Antigone (2019) são destrinchadas a partir do legado formal, temático e teórico da tragédia grega. Elementos típicos do espetáculo trágico encontram contornos específicos no filme, tais como a figura do coro, do oráculo, o estatuto ambíguo do herói e a imbricação entre a esfera pública e privada. Sem deixar de evidenciar contrastes, imensos, refletimos sobre a possibilidade da expressão do trágico em nossos tempos, por meio do cinema.

Resumo expandido

    No filme Antigone (2019), a jovem protagonista faz parte de uma família pobre de imigrantes e se dá por missão evitar a deportação iminente do irmão, pequeno traficante. Merece análise o esforço da cineasta Sophie Deraspe para repaginar, quase 2.500 anos depois, noutra sociedade e através de linguagem distinta, elementos típicos da tragédia grega. Notam-se, por exemplo, a figura do coro, do vidente, a imbricação entre a esfera pública e privada e o debate acerca da justiça. Almejamos estudar esses elementos, informados tanto pela herança da tragédia clássica quanto por outras adaptações modernas do texto de Sófocles, como as de Jean Anouilh e Bertold Brecht para o teatro (influencias reivindicadas pela cineasta) ou a de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub para o cinema. Nossa empreitada comparatista consiste em tentar entender em que medida os atributos herdados da tragédia clássica foram transfigurados para se enquadrarem no universo do drama, hegemônico nos tempos atuais.
    A fim de exemplificar o tipo de análise a que procedemos, podemos comentar dois dos quatro principais pontos analisados na comunicação. A começar pelo coro, nas tragédias antigas, essa instância ocupava posição híbrida, situada entre um personagem coletivo interno e uma instância narradora externa. Espacialmente separado dos atores, o coro interrompia o fluxo da ação e trazia à tona a perspectiva da coletividade, promovendo momentos reflexivos, de recuo. No filme Antigone, a tentativa de dar voz à esfera pública intervém sob a forma de um patchwork multimidiático, onde arquivos, hashtags, posts e tuítes peremptórios são sobrepostos ou justapostos em splitscreen, na velocidade frenética de quem zapeia. A escolha é perspicaz. Mantém a posição híbrida do coro, interna, mas deslocada em relação aos outros personagens. Traduz a dificuldade atual de se falar em uníssono, de se chegar a consensos, a ponderações medianas que deem voz a um nós. No entanto, todas as sequências dessa natureza são embaladas pelo ritmo de músicas envolventes, o que em vez de suscitar distanciamento reflexivo, promove uma forma de adesão própria ao videoclipe, cujo espectador frequentemente “surfa”, com tranquilidade extática, envolvido pela trilha musical, num vertiginoso fluxo de imagens descontínuas. Desse modo, o efeito produzido é menos o de ponderação distanciada, como provavelmente quisesse a tradição trágica, e mais o de abandono ilusionista, aproximando-se do regime de espectatorialidade perseguido pelo drama burguês desde o século 18.
    Quanto à relação, basilar na tragédia grega, entre a dimensão pública e privada, ela se dá, no texto de Sófocles, notadamente através do embate entre Antígona e o rei Creonte (aliás, único personagem importante da peça que desaparece no filme). Na tragédia, Antígona tem razões variadas para enfrentar a autoridade do rei, que não faz parte da linhagem real: tradição cultural, dever familiar, imperativo religioso. O conflito envolve, então, uma dicotomia entre Estado e religiosidade, tradição, família, indicando ainda o problema da representatividade, uma vez que o rei não age segundo a opinião da população em geral. No caso do filme de Deraspe, dada a inexistência de Creonte, a instituição judiciária passa a desempenhar difusamente o papel do antagonismo. Essa solução criativa não deixa de ser instigante, já que não vivemos em sistema aristocrático e que ela permite incorporar à obra a temática jurídica, relevante para os antigos poetas trágicos. Porém, no filme, a reivindicação ou a “causa” de Antigone, como afirma seu advogado, se resume à defesa da família, da união familiar. Já não há outro valor ou tradição que exerça essa função limitadora das instâncias legais. Ao se restringir à defesa da família, tema também caro ao drama e aos valores da burguesia, o debate público se atrofia. Apesar disso, o filme Antigone não está propriamente confinado no âmbito familiar e amoroso do drama. É provável que estejamos no terreno do drama social.

Bibliografia

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