Ficha do Proponente
Proponente
- Gabriela Kvacek Betella (UNESP)
Minicurrículo
- Bacharel em Letras (Italiano) pela USP, mestre e doutora pelo DTLLC-FFLCH-USP, com pós-doc no IEB-USP, professora assistente no DLM da FCL-UNESP-Assis, área de Língua e Literatura italiana. Sua atuação está voltada para os estudos das relações entre Literatura, História e Audiovisual, em projetos, grupos de pesquisa e no programa de pós-graduação de sua unidade, na linha de pesquisa Literatura Comparada e Estudos Culturais.
Ficha do Trabalho
Título
- Ponto de vista distorcido em histórias desconfortáveis: Fábulas Ruins
Resumo
- Analisamos a construção do ponto de vista no segundo filme dos irmãos D’Innocenzo por meio de incongruências entre voz narrativa e diegese. Observamos as histórias cruzadas de famílias de subúrbio romano de classe média em pelo menos três níveis narrativos. A voz masculina recompõe notas de um diário de menina enquanto o espectador assiste às incômodas sequências dispostas numa organização cíclica capaz de distorcer princípios estéticos da fábula para incorporar conteúdos macabros das situações.
Resumo expandido
- A fábula é uma forma por meio da qual os povos se representam e se indagam sobre si mesmos. Não há no corpo das fábulas grandes explicações teóricas ou científicas para questões humanas, mas uma fábula pode conter respostas para fenômenos inexplicáveis, medos universais, injustiças extremas. A universalidade das fábulas faz essas repostas compreensíveis por qualquer pessoa e, ainda que as variações multipliquem os elementos, há um certo número de tipos estratificados e recorrentes, cuja existência se deve à memória, capaz de perpetuar a imaginação do indivíduo ou do seu meio. As alterações que uma fábula sofre ao longo das gerações dependem do público, da época de difusão, do local. Contudo, o ponto de vista exerce o comando da narrativa disposto ou não a se revelar como narrador. Quando uma voz aparece para nos conduzir pelos fatos, sua presença é em parte definida pela memória recomposta, mais ou menos confessada na narrativa. As indagações sobre esses comportamentos e suas relações com a estrutura da fábula norteiam este trabalho.
Fábulas ruins (Favolacce, 2020) aborda acontecimentos da periferia ao sul de Roma, com famílias de classe média que levam uma vida aparentemente normal e monótona, aprisionada e insatisfeita pelo seu próprio teor. No entanto, cada família esconde suas verdades desagradáveis. A história se inicia sob o comando de uma voz over masculina ou, no dizer de Paulo Emilio Salles Gomes, “o instrumental mecânico através do qual o narrador se exprime” é a fala que menciona um diário resgatado do lixo. O caderno, segundo o narrador, seria de uma menina e, a partir do texto escrito com canetinha verde, será a fonte dos acontecimentos. A voz confessa que teria feito suas inserções para narrar as histórias cruzadas das famílias Placido, Rosa, Tommasi e Guerrini. Os destinos não são os melhores, em acordo com os ensinamentos que as fábulas antigas precisavam transmitir, muitas vezes à custa dos piores sofrimentos dos personagens. O filme poderia ser definido como uma espécie de fábula revirada ou macabra que exagera nas tintas para provocar um constrangimento que faz o espectador olhar para o outro lado durante várias passagens, dada a crueza de numerosas sequências, cuja montagem favorece um equilíbrio de ritmo narrativo que nos carrega para o final surpreendentemente trágico.
Na trama figuram as atitudes de famílias vizinhas enquanto a narrativa do diário não corresponde a certas crueldades que vemos expostas na tela, como a referendar as crueldades das outras famílias com uma certa ingenuidade do diário. Não sabemos quais histórias estão realmente contidas no diário juvenil encontrado pelo narrador, do qual só temos a voz e algumas declarações que costuram as sequências. O que vemos, no entanto, é um entrecho perfeitamente tramado com todas as histórias em contato, desde a primeira sequência até o final, levando-nos a concluir que o tempo dos fatos é relativamente curto, como se a forma da fábula se esforçasse para conter pelo menos os quatro núcleos familiares, com suas quatro histórias de desamor e abandono. O enredo é atravessado e unido pela violência fermentada, de um lado, por pais anestesiados por valores ligados ao consumismo e, de outro, pelos jovens que crescem no abandono afetivo, vulneráveis a todo tipo de influência. O espaço comum cria uma espécie de identidade geográfica nas personagens, mas nem isso e nem a identidade escolar dos filhos produz amizades autênticas. Assim, o diário de uma menina não serve aqui como o tesouro de memórias felizes. O recurso dos “manuscritos encontrados”, um dos mais antigos na história da literatura ocidental, é aludido no início do filme com o contexto contemporâneo e com fatores que chegam a macular uma tradição. O final do percurso está simbolizado no diário abandonado nos restos de um grupo, no material rejeitado por pessoas que não encontram serventia na escrita de lembranças, muito menos nas recordações de uma jovem.
Bibliografia
- CALVINO, I. Fiabe italiane. Raccolte dalla tradizione popolare durante gli ultimi cento anni e trascritte in lingua dai vari dialetti. Milano: Mondadori, 1993.
CALVINO, I. Sulla fiaba. Org. M. Lavagetto. Torino: Einaudi, 1988.
FÁBULAS ruins (Favolacce). Direção: Damiano e Fabio D’Innocenzo. Produção Pepito Produzioni, Rai Cinema, Vision Distribution, Amka Films Productions, RSI. Itália, Suíça: Vision, 2020.
JOLLES, A. Formas simples. Trad. Alvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1976.
JOLLES, A. I travestimenti della letteratura. Saggi critici e teorici (1897-1932). Milano: Mondadori, 2003.
SPERBER, S. F. Ficção e razão: uma retomada das formas simples. São Paulo: Hucitec, 2009.
STAM, R. O espetáculo interrompido: Literatura e cinema de desmistificação. Trad. José Eduardo Moretzsohn. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
XAVIER, I. A alegoria histórica. In: RAMOS, F. P. (org.) Teoria Contemporânea do Cinema. São Paulo: Senac, 2005, p. 339-379.