Ficha do Proponente
Proponente
- Júlia Machado de Carvalho (UFRJ)
Minicurrículo
- Júlia Machado é cineasta e pós-doutoranda em Linguagens Visuais na EBA/PPGAV/UFRJ. Desde 2006, realiza curtas-metragens com participação e prêmios em festivais internacionais. Graduada em Jornalismo e mestre em Comunicação Social pela PUC-Rio, é doutora em Estudos de Cinema pela Faculdade de Artes da Universidade de Aarhus (Dinamarca). Website: juliamachado.com
Ficha do Trabalho
Título
- Além dos excessos: poéticas da transgressão e o cinema de arte
Resumo
- Transgressão e excesso figuram em uma relação aparentemente inseparável. Enquanto alguns estudiosos apontam para uma qualidade inerentemente subversiva nos excessos dessa poética, alguns críticos e teóricos destacam sua condição convencional e conservadora no cinema e nas artes contemporâneas. Embora não se possa simplesmente divorciar os termos, neste artigo argumentarei que o excesso não é um parâmetro crítico apropriado para pensar os valores criativos e reflexivos das transgressões no cinema
Resumo expandido
- A arte transgressiva ganhou expressão no interior da Modernidade e produziu uma mudança relevante na maneira como pensamos e fazemos arte a partir de meados do século XIX. Tendo como base um questionamento dos parâmetros próprios ao regime representacional clássico, conduziu a uma presença mais significativa do corpo nas obras e à valorização das experiências estéticas corporificadas. De modo análogo, a transgressão no cinema é frequentemente identificada com a exibição de conteúdos interditos do corpo. Como efeito dos supostos excessos corporais e seus modos de apresentação violentos ou extremos na tela, uma certa função de choque é frequentemente atribuída a essa corrente da produção artística.
Entretanto, o que um dia foi subversivo pode ter se tornado conservador, como argumentam os filósofos Slavoj Žižek (2000) e Paul Virilio (2006) a respeito da arte transgressiva. Virilio nota que há uma tendência à banalização do excesso e a um mero “espetáculo” ou “conformismo da abjeção” na arte contemporânea (29-30). Ele argumenta que o excesso e a abjeção se tornaram um hábito e uma escalada cada vez maior do extremismo na arte transgressiva os leva à insignificância. Da mesma forma, Žižek chama de “transgressão inerente” formas de transgressão que são constitutivas ao sistema de alguma forma (18). Embora pareçam violá-lo, na verdade sustentam a ordem existente. Ele comenta sobre as condições cotidianas de choque e excesso como sendo parte do sistema capitalista e da lógica do mercado.
Curiosamente, porém, uma poética da transgressão manifesta vitalidade nos filmes de arte em um momento em que alguns críticos e teóricos destacam seu esgotamento estético e político da arte transgressiva. Nos últimos anos, os estudiosos identificaram essa nova tendência sob diferentes rótulos, como “novo extremismo” (Horeck e Kendall 2013), “cinema de sensação” (Beugnet 2012), “cinema du corps” (Palmer 2011) e “inassistível” (Grønstad 2012). Essa tendência inclui cineastas contemporâneos como Lars von Trier, Gaspar Noé, Michael Haneke, Catherine Breillat, Claire Denis, Ulrich Seidl, Lukas Moodysson, Chan-wook Park, Tsai Ming-Liang – apenas para ficarmos com alguns nomes.
Os chamados “excessos corporais” no cinema de arte parecem revelar para alguns uma qualidade subversiva na problematização de uma certa hierarquia de estilos e de uma apreciação estética distante e racional. Assim defende Martine Beugnet (2012), para quem os excessos corporais são inseridos no cinema de arte como o “outro”, excluído da modernidade: o não racional, o não progressivo e o não linear, subvertendo as fronteiras entre “alto” e “baixo” (33-4). Em contrapartida, o crítico James Quandt, em seu artigo já clássico, critica com eloquência o que identificava como uma nova onda extrema do cinema de arte francês. Nota como sendo um erro tático a abordagem dos filmes de arte aos “excessos” típicos de gêneros populares como pornografia, terror e gore. Em consonância com a crítica de Quandt, Neil Archer (2013) também questiona o caráter superficial desses excessos em sua dimensão crítica ou subversiva.
De fato, um paradoxo conceitual parece estar no cerne dessa controvérsia. Observe que a transgressão e o excesso figuram numa relação aparentemente inextricável tanto para os que defendem quanto para os que desprezam seu valor estético e político nas diferentes correntes de pensamento e crítica. Mesmo que não se possa simplesmente divorciar os termos, abordarei por que o excesso não é um parâmetro crítico apropriado para se pensar as dinâmicas poéticas e reflexivas da transgressão no cinema de arte particularmente na contemporaneidade.
Bibliografia
- Archer, Neil. 2013. “Beyond Anti-Americanism, Beyond Euro-Centrism: Locating Bruno Dumont’s Twentynine Palms in the Context of European Cinematic Extremism.” In The New Extremism in Cinema, ed. T. Horeck & T. Kendall, 55-65. Edinburgh U.P.
Beugnet, Martine. 2012. Cinema and Sensation: French Film and the Art of Transgression. Edinburg U.P.
Grønstad, Asbjørn. 2012. Screening The Unwatchable: Spaces of Negation in Post-millennial Art Cinema. New York: Palgrave Macmillan.
Horeck, Tanya, and Tina Kendall, eds. 2013. The New Extremism in Cinema: From France to Europe. Edinburgh U.P.
Palmer, Tim. 2011. Brutal Intimacy: Analyzing Contemporary French Cinema. Middletown, Connecticut: Wesleyan U. P
Quandt, James. 2004. “Flesh and Blood: Sex and Violence in Recent French Cinema.” Artforum International 42 (6): 126-32.
Virilio, Paul. 2006. Art and Fear. London: Continuum.
Žižek, Slavoj. 2000. The Fragile Absolute or Why is the Christian Legacy Worth Fighting for? London: Verso.