Trabalhos Aprovados 2021

Ficha do Proponente

Proponente

    Carolina Goncalves pinto (ECA – USP)

Minicurrículo

    Carolina Gonçalves é doutoranda e Mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, com especialização prática em Audiovisual pelo Le Fresnoy na França, extensão em prática do documentário na La Fémis e graduada em Cinema e Vídeo pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Atua como diretora e roteirista de documentários, curtas metragens e outras obras audiovisuais. Trabalhou também como assistente de direção.

Ficha do Trabalho

Título

    Fabulação e Memória no Filme Ensaio – Análise de Coração de Cachorro

Seminário

    Outros Filmes

Resumo

    A partir do conceito de fabulação elaborado por Gilles Deleuze em Imagem Tempo (DELEUZE, 1985), propomos uma análise do filme Coração de Cachorro (2015) de Laurie Anderson, com o objetivo de exemplificar a fabulação no ensaio. A fabulação, conforme Deleuze, se estabelece a partir do real, mas comporta também a invenção. O cinema de fabulação não busca retratar aspectos objetivos ou subjetivos de um personagem; visa flagrar o quê o personagem se torna, a partir de seu próprio relato.

Resumo expandido

    A partir do conceito de fabulação elaborado por Gilles Deleuze em Imagem Tempo (DELEUZE, 1985), propomos uma análise do filme Coração de Cachorro (2015) de Laurie Anderson, com o objetivo de exemplificar a fabulação no filme ensaio. Nossa discussão se pauta, sobretudo, por filmes que partem elaboração de narrativas de memórias pessoais. A narrativa fabuladora, conforme Deleuze, se estabelece a partir do real, mas comporta também a recriação desse real.
    Em Imagem Tempo (DELEUZE, 1985), Gilles Deleuze dedica um capítulo para tratar das narrativas falsificantes, cuja potência seria revelar uma outra verdade, ou uma verdade encoberta. Se no cinema clássico predominava a narração verídica, “que aspira o verdadeiro até mesmo na ficção” (DELEUZE, 1985, P. 187), neste novo cinema, é a busca pela verdade que se estabelece como motor da narrativa. A narração deixa de ser absoluta, verídica, em oposição às potências do falso, “que substitui e destrona a forma do verdadeiro, pois ela afirma a simultaneidade de presentes incompatíveis ou a existência de passados não necessariamente verdadeiros.” (DELEUZE, 1985, P. 172) Para o autor, o oposto da ficção não é o cinema do real, mas o cinema da fabulação: “A ruptura não está entre a ficção e a realidade” (DELEUZE, 1985, P. 195), mas, segundo o autor, em um novo modo de narrativa que as afeta. É na passagem de um estado a outro, no qual o personagem se mostra em seu devir. “O personagem não se separa de um antes e um depois, mas o quê ele reúne na passagem de um estado a outro”. (DELEUZE, 1985, P. 196) A função fabuladora deriva do relato e o cinema de fabulação não busca retratar aspectos objetivos ou subjetivos de um personagem, mas visa flagrar o quê o personagem se torna, a partir de seu próprio relato. Ao colocar este mecanismo em ação, o personagem cria suas próprias “memórias, suas lendas, um monstro” (DELEUZE, 1985, P. 196).
    Em Coração de Cachorro, Anderson utiliza-se de materiais de fontes diversas, como imagens de arquivo, pinturas, desenhos e fotografias, para construir uma narrativa pautada por memórias pessoais, mescladas a sequências em que busca reproduzir a visão e sensações de sua cadela de estimação sobre o mundo, ao tecer considerações sobre eventos históricos como o 11 de Setembro. Às imagens, se sobrepõem uma narração em primeira pessoa, na voz da realizadora e o sentido do filme se estabelece assim entre o que é visto e o que é ouvido. A fabulação se constitui assim neste interstício de imagens e palavras, entre memórias que a realizadora busca recuperar e traduzir e situações que esta imagina e reproduz com sua câmera; a partir deste devir. Da mesma maneira, a forma ensaística emerge a partir desta justaposição, ou nas palavras de Nora Alter, a partir de fatos e ficção (ALTER, 2018).
    O filme trata, através destes relatos e reflexões, de perdas; da mãe da realizadora, de sua cadela, de perdas sociais como as vítimas do ataque do 11 de Setembro, mas também de um mundo que deixa de existir com a queda das torres gêmeas. E, por fim, uma alusão à perda do companheiro da realizadora, Lou Reed, que não é citado ao longo da obra, mas a quem o filme é dedicado. Pensamos a fabulação como uma das formas através das quais a memória se manifesta. É através deste relato, ora reflexivo, ora fantasioso, que a fabulação vem assim se colocar como a forma de ressignificar as experiências, assim como formular um pensamento acerca do tema da morte. As lembranças, muitas vezes repletas de lacunas, escapam quando se deseja organizar um enredo. A narrativa fabulatória se edifica também a partir das ausências, se estabelece entre memória e invenção, não como uma narrativa ficcional, mas como uma outra verdade que se revela a partir de um devir.

Bibliografia

    ADORNO, Theodor, W. O Ensaio como Forma in Notas de Literatura I, Editora 34, São Paulo, 2003
    ALTER, Nora M. The Essay Film – After Fact and Fiction, New York, Columbia University Press, 2018
    BLÜMILINGER, Christa Cinéma de Seconde Main – La esthétique du remploi dans l’art du film et des nouveaux médias, Paris, Klincksieck, 2013
    CORRIGAN, Timothy. O filme-ensaio desde Montaigne e depois de Marker, Campinas, Papirus, 2015
    DELEUZE, Gilles. L’Image Mouvement, Paris, Les Éditions de Minuit, 1983
    ¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬_____________. L’Image Temps, Paris, Les Éditions de Minuit, 1985
    MACDOUGALL, David. Films de Mémoire, in Journal des Anthopologues, nº 47/48, Printemps 1992. Anthropologie Visuelle, PP. 67-86
    RANCIÈRE, Jacques. A Fábula Cinematográfica, Lisboa, Orfeu Negro, 2014
    RASCAROLI, Laura. The Personal Câmera – Subjective Cinema and The Essay
    SARLO, Beatriz. Tempo Passado – Cultura da memória e guinada subjetiva, Companhia das Letras, São Paulo, 2007