Trabalhos Aprovados 2021

Ficha do Proponente

Proponente

    Lyana Guimarães Martins (UFRJ)

Minicurrículo

    Doutoranda em Comunicação e Cultura na linha de Tecnologias da Comunicação e Estéticas no PPGCOM-UFRJ. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela UFF e bacharel em Comunicação Social pela ECO-UFRJ. Atua como montadora e diretora em projetos para televisão, publicidade e documentários. Como artista trabalha com instalação, videoprojeção, cinema experimental e documental. Realiza pesquisa sobre experiência estética, imagem, filme ensaio, atmosfera e imersão.

Ficha do Trabalho

Título

    Fora de ordem, fora da ordem: fuga do real e desejo de transcendência

Resumo

    A partir de uma análise crítica do filme Gambling, Gods and LSD (2002), do diretor suíço-canadense Peter Mettler, procura-se refletir sobre o desejo de fuga do real via estados dissociativos por meio do divino, das drogas, do entretenimento, do prazer. A hipótese é de que o próprio cinema é colocado pelo diretor como uma forma de transcendência, que se encontra não na ordem da alucinação, mas de uma consciência da percepção e uma superação da normatividade e do automatismo.

Resumo expandido

    O que um culto evangélico em uma igreja canadense tem em comum com um show de música eletrônica? Ou ainda o que um ritual tradicional indiano tem a ver com a demolição de um hotel em Las Vegas? Essas situações aparentemente bastante desconexas são algumas das muitas outras presentes no filme documentário experimental Gambling, Gods and LSD (2002) do diretor suíço-canadense Peter Mettler. Ao longo das suas três horas de duração, vemos pessoas comuns falarem sobre seus medos, seus sonhos, seus desejos, suas frustrações, suas vidas. A partir disso, somos instigados a pensar sobre as relações do humano com o imponderável, com o desejo e com as imagens.

    Por mais que seja possível traçar paralelos entre os personagens do filme com a sociedade europeia urbana do século XIX, sobre a qual alguns autores escreveram com um certo pessimismo, aqui o problema é de outra ordem. Enquanto no período moderno a crescente migração do campo para as cidades rumo a uma vida urbana agitada foi marcada por um sentimento de perda, de empobrecimento, em uma certa nostalgia do passado, com os personagens de Mettler também percebe-se um desgosto com o presente, mas não porque o passado teria sido melhor, mas porque o futuro próspero não veio e não virá. Se não há uma crença em um amanhã mais próspero, não se procura transformar a realidade, apenas escapar dela, mesmo que por um instante por um estado dissociativo. Há, assim, um desejo de fugir, não no sentido de transformar o mundo, mas de ir para um outro, que na verdade continua sendo o mesmo, só que percebido de outra maneira. Assim, o que Mettler parece querer nos mostrar aqui como desejo de transcendência trata-se de uma vontade de acessar um outro modo de perceber o mundo, que passa por um outro modo de perceber as imagens.

    Em O cinema ou o homem imaginário (2001), Edgard Morin defende que o encanto da imagem cinematográfica se encontra não no real em si, mas na própria imagem desse real. É o que Morin identifica como fotogenia, um conceito de difícil definição que passa por uma capacidade do cinema de ressaltar, de valorizar, de imprimir um aspecto poético às coisas mundanas: “o próprio da fotogenia é despertar o pitoresco nas coisas que não são pitorescas” (2001, p. 23), ele diz. Trata-se, portanto, de considerar que o cinema teria como potência a transfiguração e sublimação do real, como se diante da imagem “a vista empírica se desdobrasse em uma visão onírica” (MORIN, 2001, p. 24). A grande potência do cinema estaria, portanto, no seu caráter imaginativo e inventivo e, ao que parece, Mettler está justamente em diálogo com esse entendimento. A todo momento ele afirma e aponta que as imagens são dele, formadas a partir da sua realidade perceptual. E não se trata apenas de uma questão de perspectiva de um olhar particular de quem filma, mas de reconhecer que a percepção sofre influências também do nosso próprio corpo e da nossa memória, como apontou Bergson. Para ele, a percepção não depende do corpo, mas varia com ele, afinal as imagens do universo não se relacionam apenas com o nosso corpo, mas entre si mesmas. Assim, a percepção pode ser contaminada por ilusões, por alterações do real, de forma que os dados obtidos por nossos sentidos são sempre misturados com outros. Pode-se acrescentar ou suprimir algo na percepção, constituindo o que seria “o lado subjetivo do nosso conhecimento das coisas” (1999, p. 31). E estar consciente disso tudo não deixa de ser uma forma de transcendência: trata-se de entender o transcender, o estado dissociativo, como um se livrar das amarras, regras e convenções da normatividade, se permitir perceber, sentir e pensar outras coisas além do já programado e esperado. Assim, o próprio cinema, ao imaginar, também seria um caminho para escapar.

Bibliografia

    BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
    BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. IN: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2011.
    CHARNEY, Leo. Num instante: o cinema e a filosofia da modernidade. IN: CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
    DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007.
    MORIN, Edgard. El cine o el hombre imaginario. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 2001.
    SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. IN: CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
    VIEIRA, Erly Jr. Por uma exploração sensorial e afetiva do real: esboços sobre a dimensão háptica do cinema contemporâneo. Revista Famecos, Porto Alegre, v.21, n.3, p.1219-1240, set-dez 2014.