Ficha do Proponente
Proponente
- Olívia Érika Alves Resende (UFRJ)
Minicurrículo
- Doutoranda em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, e mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Trabalha como produtora, diretora e roteirista audiovisual no Centro de Comunicação (Cedecom) da UFMG.
Ficha do Trabalho
Título
- A potência estética das mulheres-imagens em Nhemongueta Kunhã Mbaraete
Seminário
- Cinemas pós-coloniais e periféricos
Resumo
- Busco compreender de que modo, nos quatro filmes do projeto Nhemongueta Kunhã Mbaraete, mulheres e imagens atuam, juntas, na (re/des)construção de suas próprias ontologias. Articulo a noção de corpo presente no perspectivismo ameríndio à reflexão sobre a dimensão expressiva intrínseca aos corpos das imagens cinematográficas. Percebo nas filmagens a formação de intercorpos mulheres-imagens que engendram uma potência estética contra-política ativa de (sobre/super)vivências.
Resumo expandido
- O cinema é uma arma de luta e de combate à invisibilidade feminina indígena (PINHEIRO, 2017), tendo em vista que a agência dessas mulheres (historicamente subestimada por estratificações sociais, econômicas, culturais e raciais, inclusive pela distinção de gênero hegemônica) encontra-se em um processo de tutelagem institucional (XAKRIABÁ, 2019) e que elas são minoria no campo cinematográfico. O fazer fílmico realizado pelas cineastas participantes do projeto Nhemongueta Kunhã Mbaraete (em português, “Conversas entre mulheres guerreiras”) – Graciela Guarani, Michele Kaiowá, Patrícia Ferreira Pará Yxapy e Sophia Pinheiro – manifesta uma estética descolonial expressa em configurações espaço-temporais que possibilitam uma dilatação de corpos que podem multiplicar-se, (de)formar-se e fabricar-se pictoriamente para poder vir a ser.
Nas 16 vídeo-cartas que compõem os quatro filmes do projeto, percebo uma potência político-estética realizada no encontro, ou na fusão, entre corpos femininos e imagéticos. Minha hipótese é que nesses intercorpos formam-se subjetividades mulheres-imagens, um processo de contaminação, coabitação ou abdução de agência que aciona reflexões sobre a reinvenção dos corpos fêmeo-indígenas e do próprio cinema.
Ao propor uma reflexão sobre a imagem enquanto corpo e indagar de que natureza ou potência seria um corpo filmado e como um ou mais corpos poderiam ser demarcados em um filme, encontro no perspectivismo ameríndio a noção de corpo que ultrapassa uma dimensão fisiológica, substancial: o corpo, fonte de perspectiva e subjetividade, é o modo pelo qual a alteridade é apreendida (cf. KRENAK, 2019; VIVEIROS DE CASTRO, 2002). Eduardo Viveiros de Castro (2002) aponta que o perspectivismo se ampara em uma incompletude geral da “humanidade”, em que o devir e a relação com o diferente levam ao limite um vir a ser, uma emergência de ser em sociedades virtuais. Na esteira de Viveiros de Castro, André Brasil (2010) propõe pensar o fazer cinematográfico como máquina cosmológica e cosmopolítica a partir da qual se estabelecem relações interespecíficas nem sempre visíveis, o que abre possibilidades de cruzar as barreiras corporais e administrar a perspectiva de subjetividades alo-específicas. A imagem é percebida como um corpo constantemente feito: “é uma alteração de caráter ontológico, na medida em que mudar o corpo, performá-lo, é efetivamente subjetivá-lo” (BRASIL, 2010, p. 195).
Diante desses processos de fabricação de corpos-perspectivas, como abordar a (des)subjetivação de corpos marcados pela condição “feminina”, atravessados por uma história hegemônica ocidental estruturante, submetidos ao machismo e ao racismo? Como falar da “mulher indígena” em meio a centenas de etnias que, em distintos graus, se encontram em fluxos com as dinâmicas das cidades? Em Nhemongueta Kunhã Mbaraete, estas e outras questões emergem e fissuram fronteiras impostas entre corpos e territórios, entre corpos visíveis, invisíveis ou não vistos.
A partir de análise das relações entre campo e extracampo (BRASIL, 2016) e das mesclas semiótico-sensoriais que formam as tessituras das imagens, extrapolo a relação remetente-destinatário das vídeo-cartas, uma vez que estas se respondem de forma cruzada nos quatro filmes, e adentro distintas articulações entre filmes, entre vídeos e entre aqueles e estas. Nesse percurso, o próprio fazer ensaístico cinematográfico das cineastas concorre para a formação de mulheres-imagens, acionando possibilidades híbridas de ocupar espaços, de liberar corpos de categorias e, assim, construir linhas de fuga. Concluo que esse fazer-corpo com as imagens engendra um trabalho minoritário e contra-político de (sobre/super)vivências, uma factura cotidiana que maneja ecologias e implica “uma política do corpo”: ser-imagem é resistir e (re)existir; “pôr o corpo, fazê-lo em um entorno de comunidades de afetos, que talvez se irradiarão para fora e se conectarão com outras forças e iniciativas” (RIVERA CUSICANQUI, 2018, p. 73).
Bibliografia
- BRASIL, André. Formas de vida na imagem: da indeterminação à inconstância. Revista Famecos, v. 17, n. 3, 2010.
BRASIL, André. Ver por meio do invisível: o cinema como tradução xamânica. Novos Estudos CEBRAP, v. 3, 2016.
IMS Quarentena. 2020. Disponível em: . Acesso em: 23 abr 2021.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. SP: Cia das Letras, 2019.
PINHEIRO, Sophia. A Imagem Como Arma: a trajetória da cineasta indígena Patrícia Ferreira Pará Yxapy. Dissertação. UFG, 2017.
RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Un mundo ch’ixi es posible. Ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. SP: Cosac & Naify. 2002.
XAKRIABA, Célia. Concepção de uma xakriabá sobre a autonomia indígena em meio a processos de tutelagem. In: Vukápanavo – Revista Terena, v. 2. 2019.