Ficha do Proponente
Proponente
- Letícia Xavier de Lemos Capanema (UFMT)
Minicurrículo
- Professora da Pós-graduação em Comunicação e do bacharelado em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)
Ficha do Trabalho
Título
- Memória e barbárie: dispositivos confessionais no cinema documentário
Resumo
- Discutiremos os dispositivos fílmicos confessionais acionados nos documentários “Pastor Cláudio” (Beth Formaggini, 2017) e “Ato de matar” (Joshua Oppenheimer, 2012). Os filmes abordam assassinos que aturam, respectivamente, durante a ditadura civil-militar brasileira (1964 a 1985) e o genocídio indonésio (1965 a 1966). Cada qual à sua maneira, as obras articulam dispositivos (Agamben, 2015) que acessam a memória de algozes, problematizando seus discursos e gerando confissões de crimes cometidos.
Resumo expandido
- A partir da compreensão do dispositivo como conjunto heterogêneo de estratégias inscritas em relações de poder (AGAMBEN, 2015), buscamos compreender os dispositivos fílmicos acionados nos documentários “Pastor Cláudio” (Beth Formaggini, 2017) e “Ato de matar” (Joshua Oppenheimer, 2012) para alcançar o testemunho/confissão da barbárie a partir do discurso de assassinos.
“Pastor Cláudio” traz depoimentos de Cláudio Guerra, pastor evangélico e ex-delegado responsável pelo assassinato e pela eliminação dos corpos de presos políticos durante a ditadura civil-militar brasileira. Para entrevistá-lo, a cineasta Beth Formaggini constrói um dispositivo, no qual o Pastor e seu entrevistador, o psicólogo e ativista dos diretos humanos Eduardo Passos, são inseridos em estúdio escuro equipado com uma tela de projeção. Nessa espécie de “câmara confessional”, Cláudio é confrontado com projeções de retratos de desaparecidos políticos, entre outras imagens, provocando sua memória e sua fala. A partir dessa configuração, a entrevista revela a banalidade com que o carrasco da ditadura relata a tecnologia de eliminação de corpos, bem como detalhes de crimes cometidos durante a repressão. Dessa maneira, identificamos em “Pastor Cláudio” um dispositivo fílmico confessional articulado por uma espécie de “câmara da memória” em que depoente, entrevistador e tela de projeção são dispostos no interior de um estúdio, criando um ambiente recluso e interrogativo.
Já “O ato de matar” aborda homens que participaram do massacre anticomunista ocorrido na Indonésia em 1965/66. Encorajado e financiado pelo governo dos Estados Unidos, esse assassinato em massa resultou em mais de um milhão de mortes, levando à ascensão da ditadura do general Suharto em 1967. Para relatar as memórias do genocídio, o realizador Joshua Oppenheimer se vale da estratégia meta-narrativa (STAM, 2015), ao convidar os ex-membros do esquadrão da morte a encenarem, como um filme de ficção, os assassinatos por eles cometidos, demonstrando para a câmera seus métodos de tortura e morte. Repetindo a estratégia de Shakespeare (como a peça-dentro-da-peça em Hamlet), Oppenheimer expõe a perspectiva dos assassinos, que encenam seus crimes, apropriando-se dos gêneros e estilos de Hollywood, como faroeste, musicais e filmes de gângster. As encenações são alternadas com entrevistas, onde os matadores explicam, em detalhes, suas técnicas e motivações. O esquema filme-dentro-do-filme, misturando fatos e ficção, expõe a barbaridade do discurso dos assassinos e, ao mesmo tempo, uma confissão de crime pela auto-mise-en-scène.
Embora tratem de contextos distintos, os filmes destacados se aproximam no sentido de criarem espaços de fala para assassinos e torturadores, privilegiando a história dos vencedores (BENJAMIN, 2012). Entretanto, se por um lado as obras optam pela escuta da atrocidade, colocando assassinos na posição de protagonistas da história contada, por outro, a palavra dos algozes se encontra submetida à instância narradora dos filmes – articulada pela interação do códigos fílmicos, principalmente pela montagem (NICHOLS, 2005) – resultando na exposição da perversidade e da absurdidade dos discursos de seus depoentes. É nesse sentido que tais documentários desenham complexos dispositivos fílmicos confessionais que permitem o discurso da barbárie (seja pela palavra, seja pela encenação) e, ao mesmo tempo, o seu enquadramento crítico. Cada qual à sua maneira, os dispositivos propostos pelos realizadores criam um perigoso jogo de aproximação e de afastamento entre equipe e depoentes que se traduz nas tensas relações entre os discursos dos filmes e de seus personagens.
Bibliografia
- AGAMBEN, Giorgio. O amigo & O que é um dispositivo? Chapecó, SC: Argos, 2014.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012.
BRAGA, José Luiz. Uma conversa sobre dispositivos. Belo Horizonte, MG: PPGCOM/UFMG, 2020.
CAPANEMA, Letícia. Mise en scène de la mémoire d’un génocide: images dialectiques et lisibilité de l’histoire. In:Funes. Journal of Narratives and Social Sciences 2020 | Vol. 4. Disponível em: Acesso em 05/04/2021.
HUYSSEN, A. Culturas do passado-presente. Modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro, RJ: Ed. Contraponto, 2014.
NICHOLS, Bill. A voz do documentário. In: RAMOS, Fernão (org.). Teoria contemporânea do cinema. São Paulo: SENAC, 2005. v. 2.
STAM, R. Keywords in Subversive Film/Media Aesthetics. Malden, MA: Wiley Blackwell, 2015.