Ficha do Proponente
Proponente
- Aline Rebouças Azevedo Soares (UFC)
Minicurrículo
- Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), onde estuda narrativas biográficas de pessoas trans* no documentário brasileiro (bolsa Funcap-CE). Mestre em Comunicação (UFC). Graduada em Comunicação Social pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Pesquisadora integrante do Paralaxe – Grupo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções em Psicologia Social Crítica (UFC) e do projeto Cartografias de Documentários em Tempos de Pandemia – Unifor.
Ficha do Trabalho
Título
- Mulher Trans* Tornada: o documentário como narrador do corpo desviante
Resumo
- Nessa pesquisa analiso narrativas biográficas de pessoas trans* no documentário brasileiro contemporâneo. Exploro o gênero como lugar de fala do sujeito com o estudo de três filmes em que há envolvimento de pessoas trans* nas produções. Penso ainda o documentário como “profanador de dispositivos”; o aspecto social do termo “enquadramento” e possíveis articulações com o uso desse termo no campo técnico do audiovisual. A metodologia articula análise fílmica e análise imanente do discurso.
Resumo expandido
- Muitos documentários sobre transgeneiridade vêm sendo produzidos nos últimos dez anos no Brasil. No entanto, o cenário sociopolítico do país tem se mostrado cada vez mais intolerante com a diversidade de gênero, ao passo que flerta com modos autoritários de gestão pública. Diante desse contexto sociopolitíco, interessa-me analisar narrativas biográficas de pessoas trans* em documentários brasileiros contemporâneos, bem como pensar essas narrativas como expressões mobilizadoras de resistência política diante de um governo federal conservador de extrema direita.
No documentário, o encontro com o outro é acompanhado por um atravessamento que se constitui nas possibilidades de descobertas, incertezas, estranhamentos ou mesmo nas impossibilidades (COMOLLI, 2008). Esse processo adquire potencial ainda mais transformador quando o sujeito de quem se conta a história tem a oportunidade de direcionar o olhar da câmera em alguma medida, ou seja, tomar decisões de roteiro e produção.
Manter a presença da câmera e de pessoal técnico no enquadramento, preservar ruídos “acidentais”, como o latido de um cachorro ou o toque de um telefone são indicativos de uma produção que prima pela “verdade da filmagem” (COUTINHO, 1997) é característico do documentário, e também uma forma de mostrar legitimidade narrativa, indicando, por vezes, uma finalidade crítica naquela produção.
A partir de análises fílmicas de Lembro mais dos corvos (2019), de Gustavo Vinagre; Katia, o filme (2012), de Karla Holanda e Bixa Travesty (2018), de Claudia Priscilla e Kiko Goifman, documentários que trazem narrativas biográficas de Julia Katherine, Katia Tapety e Linn da Quebrada, respectivamente, proponho pensar o documentário como um possível lugar de fala do sujeito e um “profanador de dispositivos”, segundo as concepções de Giordio Agamben (2005; 2007). Abordo também o aspecto social do termo “enquadramento”, discutido por Judith Butler (2015), tendo em vista o diálogo possível com o uso do termo no campo técnico do audiovisual.
Em Katia, o filme (2012) são expostas certas intervenções da protagonista, como quando ela explica às pessoas que cumprimenta na rua a presença da câmera: “é a gravação do filme de Kátia”; ou quando diz, não num pedido, mas num comando: “filma eu descendo a escada”. Bixa Travesty (2018) profana diversos dispositivos, como as opressões do patriarcado, da heteronormatividade e da religião, estruturas reguladoras dos corpos e do desejo. Linn da Quebrada usa os dispositivos utilizados pelo homem para profaná-los e, assim, profanar a padronização e a exclusão de corpos que eles promovem, esvaziando-os de sentido e reconfigurando-os, politizando-os. Julia Katherine conta em Lembro mais dos corvos que roubava filmes quando trabalhou em uma locadora de fitas VHS, entre outras narrativas que fluem numa fala singela, que confunde o inventado com partes de sua história de vida.
A metodologia articula análise fílmica (VANOYE, 2006) e análise imanente do discurso (ADORNO, 2003) e é amparada por uma pesquisa bibliográfica que vem se desenvolvendo em paralelo e em consonância com as análises, constituindo-se de obras de Theodor Adorno, Jacques Aumont, Aby Warburg, Walter Benjamin e Georges Didi-Huberman.
Pensar o documentário como um lugar de fala implica em dialogar com a perspectiva de Djamila Ribeiro (2019) em propor uma dimensão social e ética acerca das posições hierárquicas que ocupamos e que oferecem mais e melhores oportunidades a determinados grupos em detrimento de muitos outros. Falar a partir do próprio lugar de fala é, portanto, manifestar um posicionamento crítico acerca das desigualdades e opressões de raça, classe e gênero que marcam essa fala. Daí a importância política e social de pessoas trans* assumirem posições de destaque no processo de elaboração de documentários cuja temática as atravessa, especialmente as funções de roteiro e direção, viabilizando, assim, o potencial emancipador que é imanente ao gênero.
Bibliografia
- ADORNO, Theodor. Palestra sobre lírica e sociedade. In: ADORNO, Theodor. Notas de literatura I. Tradução Jorge Mattos Brito de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003. p. 65-89.
AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo?. Outra travessia, n. 5, p. 9-16, 2005.
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.
COUTINHO, Eduardo. O cinema documentário e a escuta sensível da alteridade. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, v. 15, 1997.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento; Justificando, 2017.
VANOYE, Francis. Ensaio sobre a análise fílmica. Papirus Editora, 20