Ficha do Proponente
Proponente
- Isabela Magalhães Bosi (PUC-SP)
Minicurrículo
- Doutoranda em Literatura e Crítica Literária na PUC-SP. Mestra em Memória Social pela UNIRIO, com pesquisa selecionada pelo Edital UFMG 2020 para publicação. Graduada em Jornalismo na UFC, com trabalho de conclusão premiado e publicado pela Editora UFC. Estudou História da Arte, na Universidade de Santiago de Compostela, e participou de cursos livres na Université Catholique de Lyon e na University of Toronto. Possui três livros publicados, além de vídeos e textos em revistas e antologias.
Ficha do Trabalho
Título
- L’image écrite e os múltiplos tempos de Aurélia Steiner
Resumo
- O objetivo deste trabalho é analisar as múltiplas temporalidades construídas nos filmes Aurélia Steiner dite Melbourne (1979) e Aurélia Steiner dite Vancouver (1979), ambos escritos, dirigidos e narrados por Marguerite Duras – sem perder de vista que, para Duras, seu cinema é, antes, imagem escrita (image écrite), na qual é possível inventar outros tempos. Para tanto, dialogamos, especialmente, com Gilles Deleuze e seu conceito de imagem-tempo, sobretudo a partir da leitura de Peter Pál Pelbart.
Resumo expandido
- O objetivo deste trabalho é analisar as múltiplas temporalidades construídas nos filmes Aurélia Steiner dite Melbourne (1979) e Aurélia Steiner dite Vancouver (1979), ambos escritos, dirigidos e narrados por Marguerite Duras – sem perder de vista que, para Duras, seu cinema é sempre, e antes, imagem escrita (image écrite), na qual é possível inventar outros tempos (Duras, 1996).
Os dois filmes são narrados em primeira pessoa, na voz off de Duras, que dá corpo à Aurélia Steiner, nome de uma mulher vítima da Shoah, de uma criança nascida no campo de concentração, de uma habitante de Melbourne, Vancouver e Paris, de uma mãe e uma filha. Todas ao mesmo tempo, num aqui-agora como coexistência de passado, presente e futuro. Ao ser questionada se essas Aurélias seriam uma só, Duras responde que sim, “como todos os judeus de todos os tempos”, sobreviventes dos campos, esse “acidente na generalização da morte” (Idem, p. 129).
Essas múltiplas vozes, de uma Aurélia única e plural, fundam um eterno presente e, ao mesmo, uma atemporalidade, que se desdobra numa possibilidade infinita de fabulação, no abismo dessa escrita cujo destinatário desconhecemos (Ibáñez, 2019). O paradoxo entre o atemporal e o eterno presente, essa multiplicidade de tempos, é também o gesto radical de Duras diante das impossibilidades de representação no cinema. “Mostro o que não é representável, é o que me assombra e me interessa” (Duras, 1980, p. 43). Assim, ela reforça, em ambos os filmes – poderíamos dizer, também, em toda sua filmografia –, uma tensão entre as imagens que mostra e a impossibilidade das imagens que diz. A travessia se faz, portanto, pelo não-representado das imagens escritas (images écrites) que Duras cria (Cazenave, 2011).
Dialogando com Gilles Deleuze, sobretudo a partir da leitura de Peter Pál Pelbart, buscamos analisar essa construção de múltiplos tempos nas imagens escritas de Duras, que se assemelham à imagem-tempo deleuziana. O filósofo, em seu segundo livro sobre o cinema, diz que a imagem-tempo surge com o cinema dito moderno, após a Segunda Guerra (Deleuze, 2018). Esse cinema, no qual se encaixa o díptico Aurélia Steiner, põe em questão “situações às quais já não podemos reagir” (Idem, p. 323). Ao contrário da imagem-movimento de um cinema clássico, anterior à guerra, agora estamos diante de uma ausência de ação, ausência de corpos, ausência de linearidade temporal, ausência, sobretudo, de uma representação – que passa a ceder lugar a uma apresentação.
Segundo Pelbart (2000), o cinema serviu a Deleuze “para revelar determinadas condutas do tempo”, cujas imagens já não formam uma unidade, mas uma pluralidade de tempos, ou de imagens-tempo, multivetoriais, com uma liberdade profunda em relação ao presente, anunciando um outro regime de imagens (Pelbart, 2015, p. 15). O tempo, agora, parte-se em “diversos presentes pertencentes a mundos distintos, embora num certo sentido, mais genérico, eles pertençam a um mesmo mundo estilhaçado” (Pelbart, 2000, p. 89). Aurélia Steiner emerge desse mundo-tempo, liberto de um cronos e mais próximo de um aion, beirando à alucinação, ao delírio – próprio do pensamento e da arte.
Deleuze e Duras compreendem que, após a guerra, já não é possível preservar uma continuidade da linguagem e do tempo, agindo como se o mundo não estivesse esfacelado. É preciso permitir, ao pensamento e ao cinema, o irrepresentável, essa image écrite, cuja fragmentação condiz com esse novo tempo, que já não se pode conjugar, como antes, de forma linear. Os filmes de Aurélia Steiner ocupam justamente esse tempo rizomático, múltiplo, de um cinema que já não busca representar nada, mas, sim, apresentar o irrepresentável.
Bibliografia
- CAZENAVE, Jennifer. “La voix off au féminin: Hiroshima mon amour et Aurélia Steiner”. In: Cahiers de Narratologie, n. 20, 2011, p.8-16.
DELEUZE, Gilles. Cinema 2: a imagem-tempo. Trad. Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo: Editora 34, 2018.
DURAS, Marguerite. “Le Malheur merveilleux: Pourquoi mes films?” In: Cahiers du Cinéma, juin/1980, pp. 79-86.
DURAS, Marguerite. Les yeux verts. Paris: Editions de l’Etoile, 1996.
IBÁÑEZ, Lourdes Monterrubio. “La evolución de la materia epistolar en la obra literaria de Marguerite Duras: Aurélia Steiner, la destrucción de la misiva”. In: Çédille, revista de estudos franceses, nº 15, abril/2019, pp. 423-457.
PELBART, Peter Pál. “O Tempo Não-Reconciliado”. In: ALLIEZ, Éric (org.). Gilles Deleuze: Uma Vida Filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000, pp. 85-97.
PELBART, Peter Pál. O Tempo Não-Reconciliado. São Paulo: Perspectiva, 2015.