Ficha do Proponente
Proponente
- Lia Bahia (ESPM RJ)
Minicurrículo
- É doutora em comunicação social pela Universidade Federal Fluminense, com pesquisas sobre política, cultura e economia do cinema e televisão. Atualmente é professora do curso de Cinema e Audiovisual da ESPM e da pós-graduação em documentário da FGV. Ganhou Prêmio do Rumos Itaú Cultural de pesquisa concluída com sua dissertação “Discursos, políticas e ações: processos de industrialização do campo cinematográfico brasileiro”. Atuou em diversos órgãos públicos como Ancine, RioFilme e SEC RJ.
Ficha do Trabalho
Título
- Caos regulatório e a guerra do streming no Brasil: uma análise crítica
Resumo
- A sincronicidade entre a crise política e institucional do cinema e audiovisual independente brasileiro e o crescimento de serviços de streming, ainda sem regulação no país, configura um fenômeno recente e gera novas contradições e (des)conexões no setor. O trabalho examina, sob uma abordagem exploratória, as relações internas bem como os contornos políticos e econômicos da geopolítica mundial que afetam, de maneira sistêmica, toda a cadeia produtiva do cinema e audiovisual nacional.
Resumo expandido
- Após conquistas fundamentais para a garantia de direitos culturais na Constituição de 1988 e a implementação gradual de políticas públicas robustas nas décadas seguintes, o ano de 2020 e 2021 vão entrar para a história do cinema brasileiro como um filme de gênero – o de terror. Em um curto período, retrocessos irreversíveis atingiram as políticas públicas.
Ataques explícitos à regulação já estabelecida (AUTRAN, 2013 e BAHIA, 2012) conjugados com uma proposital anarquia regulatória de novos segmentos do setor, contribuem para agravar o cenário de crise institucional, constitucional e econômica da cultura no Brasil. Marcos regulatórios que induziram o crescimento da indústria audiovisual em quase 9% ao ano, a ocupação de quase 20% da programação na TV Paga por obras brasileiras e o autofinanciamento da política de fomento, foram desconsiderados (OCA, Ancine, 2021).
Vivemos um momento de asfixia nas políticas públicas, que deixa marcas na história da produção audiovisual brasileira. A retração sistêmica se expressa na paralisação do fomento e ausência de regulação para o desenvolvimento do setor. Milhares de desempregados, produções paralisadas, salas de cinema fechadas, o produto brasileiro perde espaço, inclusive na distribuição.
Tais processos acompanhados pela retórica oficial de criminalização de artistas e fazedores de cultura plasmam fenômeno complexo: a escassez de financiamento e regulação para o produto nacional se adiciona uma acepção que o desvaloriza simbolicamente e questiona sua relevância e “qualidade”.
Embora ações e omissões governamentais sejam incompatíveis com a Constituição, uma agenda pragmática se impõe. Autoridades públicas atribuem a queda vertiginosa das atividades do audiovisual brasileiro ao advento da pandemia, consequentemente ao ano atípico de 2020. Contudo essa relação linear causa-efeito não tem base de sustentação na realidade. Sob os cortes de recursos e uma censura travestida de tecnicismo perverso e silenciador, crescem as empresas estrangeiras de vídeo sob demanda no país.
Ainda sem regulação no país, o VOD, as empresas de streming avançam e parecem uma “salvação” para o mercado nacional na “tela global” (LIPOVETSKY e SERROY, 2009). Vemos um aumento da produção de obras originais realizados por produtoras, direção, técnicos e elenco brasileiros.
Trata-se de uma estratégia que aparentemente assegura sobrevivência, na qual pouco se menciona o direito de propriedade intelectual das obra originais (FIGUEIREDO, 2016). Como este direito fica para as empresas estrangeiras acabamos nos tornando prestadores de serviços. Iniciativas privadas, sem mediações regulatórias, carregam consigo consequências simbólicas, econômicas e cidadãs, das quais derivam opções éticas e estéticas.
Com base na investigação de documentos e informações empíricas e em referências conceituais, destaco três elementos de disputas na geopolítica mundial: a imposição de modos de produção pelos serviços de streming como modo dominante; a padronização de uma estética e narrativa como referência de “qualidade” e distinção (BOURDEIU, 2008) e os desdobramentos para a recepção e espectatorialidade (BAMBA, 2013 e SILVA, 2014).
No contexto geopolítico ou no “globalitarismo” (SANTOS, 2000), o retorno de um ciclo, agora ultraliberal, coloca em xeque a nossa soberania nacional. A pergunta sobre a vigência de uma nova colonização audiovisual diante da ausência de medidas regulatórias nos serviços de VOD no Brasil é pertinente, especialmente porque remete a necessidade de não confundir realidade com ficção: subjaz à desestruturação da cadeia produtiva que incide sobre o produto independente nacional, sobre nossa propriedade intelectual e sobre o que vamos consumir como imaginário em um mundo cada vez mais global, com interesses objetivos e valores opostos ao reconhecimento dos modos de ser, fazer e produzir latino-americanos, igualitários, democráticos, antirracistas e feministas.
Bibliografia
- AUTRAN, Arthur. O pensamento industrial cinematográfico brasileiro. São Paulo: Hucitec editora, 2013.
BAHIA, Lia. Discursos, políticas e ações: processos de industrialização do campo cinematográfico brasileiro. São Paulo, Itaú Cultural, 2012.
BAMBA, M. A Recepção cinematográfica: teoria e estudos de casos. 1. ed. Salvador: EDUFBA: Editora da Universidade Federal da Bahia, 2013.
BRASIL, OCA, Ancine, 2021.
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2008.
FIGUEIREDO, Fábio Vieira. Direito de autor: Proteção e disposição extrapatrimonial. São Paulo: Saraiva, 2a ed., 2016.
LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean. A tela global: mídias cultuais e cinema na era hipermoderna. Porto Alegre: Sulina, 2009.
SANTOS, Milton, Por uma outra globalização. São Paulo: Record, 2000.
SILVA, Marcel V.B. “Cultura das séries: forma, contexto e consumo de ficção seriada na contemporaneidade”. In: Galaxia (São Paulo, Online), n. 27, p. 241-252, jun. 2014.