Ficha do Proponente
Proponente
- Cecília Antakly de Mello (USP)
Minicurrículo
- Cecília Mello é Professora Associada no Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da USP. É autora de The Cinema of Jia Zhangke: Realism and Memory in Chinese Film (Londres: Bloomsbury 2019 – Honourable Mention – Best Monograph 2020 – British Association of Film, Television and Screen Studies).
Ficha do Trabalho
Título
- Realismo Fantasmagórico em Longa Jornada Noite Adentro, de Bi Gan
Seminário
- Montagem Audiovisual: Reflexões e Experiências
Resumo
- Meu objetivo nessa comunicação será investigar de que forma a manipulação das convenções de ilusionismo e o uso do plano-sequência contribuem para a criação de um espaço cinematográfico instável no filme Longa Jornada Noite Adentro (Bi Gan, 2018), levando à criação de uma atmosfera ao mesmo tempo realista e fantasmagórica.
Resumo expandido
- Meu objetivo será investigar de que forma a manipulação das convenções de ilusionismo e o uso do plano-sequência contribuem para a criação de um espaço cinematográfico instável no filme Longa Jornada Noite Adentro (Bi Gan, 2018), levando à criação de uma atmosfera ao mesmo tempo realista e fantasmagórica. Parto da observação de que filmes chineses e latino-americanos recentes vem se caracterizando por tendência realista similar que aponta, por um lado, para a persistência da indexicalidade e, por outro lado, para a incorporação de elementos fantásticos, mágicos e fantasmagóricos, complicando assim a relação entre a imagem cinematográfica e o real objetivo. Como consequência, esses filmes se abrem à intersecção de diferentes temporalidades: o presente da realidade fenomenológica, as camadas do passado e o universo da memória que pertence ao tempo das presenças póstumas, e as ocorrências estranhas que podem pertencer ao futuro ou serem simplesmente atemporais.
O que chamo de “realismo fantasmagórico” se origina, em parte, da relação entre a ontologia pós-fotográfica e os paradigmas espaciais em transformação no cinema e no audiovisual. Como é sabido, a teoria do dispositivo cinematográfico (Baudry, 1986) e o entendimento da espectatorialidade como análoga à regressão à fase do espelho Lacaniana (Metz, 1982), propostos a partir do final dos anos 1960 pela crítica de influência estruturalista, semiótica e psicanalítica, passaram por diversas revisões desde o início dos anos 1990, nas quais a ideia do cinema como herdeiro direto da perspectiva Renascentista foi rechaçada. Elsaesser, por exemplo, relaciona a presente “virada ontológica” no cinema a uma renúncia do modo de representação visual baseado na perspectiva central monocular (Elsaesser, 2015, p. 44). Outras críticas podem ser encontradas na proposta por um entendimento cognitivista da perspectiva de David Bordwell (1985), a rejeição por Jonathan Crary (1990) da ideia de uma posição objetiva única do saber, e a proposição de Giuliana Bruno do cinema como uma arte espacial, movendo o foco de “sight/olhar” para “site/lugar”. Nesse processo de revisão, o espaço fílmico passa também a ser apreciado a partir da experiência tátil e do movimento (Sobchack, 2004; Marks, 2000).
Se a própria noção de espaço na cultura visual contemporânea tende à fluidez, é notável o número de experiências cinematográficas na América Latina e no Leste Asiático que, ao emergirem de lugares em transição, colocam em xeque a propriedade indéxica da imagem cinematográfica, que passa a sofrer de uma “desconfiança epistemológica”. A perda da perspectiva monocular, a transformação do espaço e o desaparecimento da memória, ao mesmo tempo em que trazem à tona um desejo de preservação do real, também parecem sugerir que não é mais possível confiar no que se vê.
Levando essas hipóteses em consideração, meu objetivo será explorar de que forma essa desconfiança epistemológica se manifesta esteticamente no tour de force do diretor chinês Bi Gan. O filme é composto de duas partes, a primeira em 2D e a segunda um plano-sequência de uma hora de duração em 3D. Na primeira parte, a narrativa cronológica é constantemente interrompida pela emergência da memória por via da manipulação de convenções da montagem como o campo-contracampo e a subjetiva, que deixam de estar a serviço de uma ilusão da realidade e passam a ser empregados para confundir a linearidade fílmica e introduzir uma dimensão “fantástica” ou “assombrada” à diegese. Na segunda parte, o uso do plano-sequência, espinha dorsal do realismo estético Baziniano, transmuta-se em um amálgama capaz de conter, de uma só vez, múltiplas temporalidades e espacialidades. Assim, tanto a montagem ilusionista quanto o realismo do plano-sequência deixam de garantir a estabilidade espacial e a cronologia, e apontam para o impacto das intensas transformações espaciais e a consequente perda da referência e da memória, típicos do momento histórico em que vivemos.
Bibliografia
- Baudry, Jean-Louis (1986), ‘Ideological effects of the basic cinematographic apparatus’, in Rosen, Philip (ed.), Narrative, apparatus, ideology: a film theory reader. NewYork: Columbia University Press
Berry, Chris (2007), “Haunted Realism: Postcoloniality and the cinema of Chang Tso-chi”, in Davis, Darrell Williams and Chen, Ru-shou Robert (eds.), Cinema Taiwan: Politics, popularity and stage of the arts. London, Routledge
Bonitzer, Pascal (1985), Decadrages: peinture et cinéma. Paris: Seuil.
Crary, Jonathan (1990), Techniques of the Observer: On Vision and Modernity in the Nineteenth Century. Cambridge, MASS.: MIT Press
Elsaesser, Thomas (2009), “World Cinema: Realism, Evidence, Presence”, in Nagib, Lúcia and Mello, Cecília (eds.), Realism and the Audiovisual Media. Basingstoke: Palgrave Macmillan
Heath, Stephen (1976), ‘Narrative space’. Screen 3, 68-112.
Shaviro, Steven (2006), The Cinematic Body. Minneapolis/London: University of Minnesota Press.