Ficha do Proponente
Proponente
- Cláudia Cardoso Mesquita (UFMG)
Minicurrículo
- Professora do curso de graduação e do programa de pós-graduação em Comunicação Social da UFMG, onde integra o grupo de pesquisa Poéticas da Experiência. Pesquisadora do cinema brasileiro, com mestrado e doutorado na ECA-USP. Em 2018/19, realizou pós-doutorado na UFC, desenvolvendo o projeto “O presente como história – estéticas da elaboração no cinema brasileiro contemporâneo”. Publicou, com Consuelo Lins, o livro “Filmar o real – sobre o documentário brasileiro contemporâneo” (2008).
Ficha do Trabalho
Título
- Emergências fílmicas das mulheres sem-terra como sujeitas políticas
Seminário
- Cinemas mundiais entre mulheres: feminismos contemporâneos em perspectiva
Resumo
- A memória das lutas populares pela terra agrícola, tal como inscritas nas imagens do cinema brasileiro, esboça – com limites, mas também com potências e nuances – o protagonismo das mulheres. Partimos do desejo de inventariar algumas dessas imagens, ensaiando com elas em torno das aparições das mulheres, dos sentidos atribuídos à experiência feminina e dos efeitos subjetivos e políticos da organização das sem-terra, tal como elaborados pelo documentário brasileiro.
Resumo expandido
- A memória das lutas populares pela terra agrícola, tal como inscritas nas imagens do cinema brasileiro, esboça – com limites, mas também com potências e nuances – o protagonismo das mulheres. Caso paradigmático de Elizabeth Teixeira, militante das Ligas Camponesas, personagem central de Cabra marcado para morrer (E. Coutinho, 1984). E também de Roseli Nunes da Silva – cuja história de luta acompanhamos em Terra para Rose (1987), com reverberações em trabalhos posteriores de Tetê Moraes, que registrou o primeiro grande acampamento do MST no Rio Grande do Sul, em 1986.
Partimos do desejo de inventariar algumas dessas imagens, ensaiando com elas em torno das aparições das mulheres, dos sentidos atribuídos à experiência feminina e dos efeitos subjetivos e políticos da organização das trabalhadoras rurais, tal como elaborados pelo documentário brasileiro. Move-nos o desejo de “historicizar a estética”, como propõe Naara Fontinele dos Santos (2020): ao analisar as imagens, buscar enredá-las na complexidade de processos históricos mais abrangentes, de que os filmes participam.
De modo a tecer aproximações e contextualizações, vamos nos concentrar, nesta apresentação, em registros que documentam a gênese do MST na região sul do Brasil: Encruzilhada Natalino (A. Centeno, 1981), A classe roceira (Berenice Mendes, 1985) e Terra para Rose (Tetê Moraes, 1987).
Encruzilhada Natalino apresenta uma síntese precisa da crise no campo gaúcho deflagrada pela monocultura da soja, estimulada pelo Estado nos anos 1970. Endividados, sem terra e forçados à migração, dois mil colonos e colonas sem-terra prefiguraram, em 1981, a “lona preta” como forma de luta pela reforma agrária (SIGAUD, 2009). Em meio às manifestações no acampamento, registradas em super 8, chama atenção a aparição de uma mulher, que discursa com veemência: “Sempre fomos deixadas de lado. Fomos feitas para trabalhar e a previdência não considera a gente como trabalhadora”.
Reivindicação central, que nos conduz a outro filme pioneiro: A classe roceira, registro do primeiro acampamento do MST no Paraná, em 1985. Depois de apresentá-lo através do trabalho de mulheres e homens, Berenice pergunta a Dona Marlene, que lava roupas, sobre “a união das mulheres na luta pela terra”. Mesmo que não se demore sobre a questão feminina, a referência à organização específica das mulheres sem-terra sinaliza toda uma mobilização fora de campo: os movimentos autônomos de camponesas, emergentes nos anos 1980, em sua luta por direitos trabalhistas (só assegurados às mulheres pela Constituição de 1988).
Cenas de trabalho feminino também pontuam Terra para Rose, primeiro fruto da aliança ética de Tetê Moraes com as sem-terra que conheceu acampadas na Fazenda Annoni (RS), em 1986. O filme se ancora nos percursos e falas de algumas delas –especialmente de Rose, mãe de três filhos que, na pressão pela desapropriação da fazenda, marcha durante 28 dias até Porto Alegre, com um bebê de nove meses no colo.
Além de flagrar a emergência das mulheres sem-terra como sujeitas políticas, Terra para Rose recorre a momentos de dialetização, na montagem, quando encena – de maneira peculiar – a luta de classes. Caso do confronto entre as falas de Bolívar Annoni, proprietário da fazenda, e de Rose, jovem acampada. A escolha por contrapor o discurso do latifundiário ao que diz uma camponesa sem-terra desestabiliza hierarquias de gênero, confrontando a tradicional invisibilidade das mulheres na construção imagética da classe trabalhadora (SCOTT, 1988).
Opção coerente com a experiência feminina nos processos de luta pela terra, quando, para Schwendler (2009), duas construções parecem se colocar simultaneamente em jogo: a da “identidade sem-terra” (“como classe que se põe em luta para a transformação das condições materiais da existência”) e da “mulher sem-terra” – “ao questionar e reconstruir, a partir da sua inserção em diferentes espaços, a condição histórica de participação da mulher na sociedade” (p. 204).
Bibliografia
- GONÇALVES, Renata. (Re)politizando o conceito de gênero: a participação política das mulheres no MST. Mediações, Londrina, v. 14, n.2, p. 198-216, Jul/Dez. 2009.
LOPES A. & BUTTO A. Mulheres na reforma agrária – a experiência recente no Brasil. Brasília: MDA, 2010.
SANTOS, Naara Fontinele. Quando o cinema se oculta e se expande no coração da desordem – potências críticas do documentário brasileiro (1960-1976) (Tese de Doutorado). Paris/Belo Horizonte, Paris 3/UFMG, 2020.
SCHWENDLER, Sônia Fátima. A participação da mulher na luta pela terra: dilemas e conquistas e SIGAUD, Lygia. A engrenagem das ocupações de terra. IN: Fernandes, B.M; Medeiros, L.S; e Paulilo, M.I. (orgs.) Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas, v.2. A diversidade das formas das lutas no campo. São Paulo: Editora Unesp, 2009.
SCOTT, Joan. Gender and the Politics of History. NY: Columbia University Press, 1988.