Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    Cleissa Regina de Oliveira Martins (UFF)

Minicurrículo

    Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Cinema da Universidade Federal Fluminense. Autora e co-autora de levantamentos sobre raça e gênero no cinema brasileiro no Grupo de Estudos Multidisciplinar sobre Ação Afirmativa (GEMAA/Uerj). Em 2017 pesquisou cinema latino-americano na Universidade de Alberta no Canadá, com ênfase nas relações entre Brasil e México. Faz parte da APAN (Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro) e trabalha com roteiro e direção de arte.

Ficha do Trabalho

Título

    A alma no olho: o olhar para a câmera em Café com Canela e Temporada

Seminário

    Cinema Negro africano e diaspórico – Narrativas e representações

Resumo

    O presente trabalho busca discutir o olhar do personagem para a câmera em dois longas-metragens do cinema nacional. A presença desse gesto em obras feitas por diferentes realizadores negros mostra uma questão que deve ser mais bem examinada. O ato de personagens negros olharem para a câmera aqui pode significar uma tomada de lugar no exercício de fazer cinema e uma subversão das representações até então pensadas para pessoas negras na frente, mas também atrás das câmeras.

Resumo expandido

    O presente trabalho busca discutir o olhar do personagem para a câmera em dois longas-metragens do cinema nacional, Café com Canela (2017) de Glenda Nicácio e Ary Rosa, e Temporada (2018), de André Novais de Oliveira. Gunning (1986) coloca que o ato de o ator olhar para a câmera era comum no cinema de atrações, mas é percebido como gerador de quebra da ilusão do cinema narrativo diretamente posterior. Acreditamos que a presença desse gesto em obras feitas por diferentes realizadores negros contemporâneos mostra uma questão que pode ser mais bem examinada a partir de seus significados estéticos e políticos.

    No cinema brasileiro, o curta-metragem Alma no Olho (1974), primeiro filme de Zózimo Bulbul – hoje considerado o pai do cinema negro nacional – como diretor, brinca com esse gesto, o que é percebido já em seu título. Na obra de 11 minutos Bulbul está em cena sozinho e olha para a câmera em vários momentos, inclusive no primeiro plano, que é um close em seus olhos. Atualmente o cinema negro brasileiro passa por um período fértil, com a emergência de novos nomes cujas obras chegam a circular em cinemas e, principalmente, em diversos festivais. Mais de trinta anos depois da estréia de Bulbul como cineasta é possível ver, na repetição do gesto de olhar para câmera, o legado não só político, mas também estético de sua obra.

    O filme Café com Canela (2017), de direção de Glenda Nicácio e Ary Rosa foi um marco no cinema brasileiro recente por ter sido apenas o segundo longa-metragem de ficção dirigido por uma mulher negra a entrar no circuito comercial. O filme traz o encontro de duas mulheres negras, Violeta (Aline Brunne) e Margarida (Valdinéia Soriano), no recôncavo baiano e mostra a tentativa da primeira em ajudar a segunda a superar a dor do luto. Aqui, o olhar para câmera acontece num momento metalinguístico do filme. Enquanto limpam a casa, as duas falam sobre cinema e televisão e Violeta leva o olhar lentamente para a câmera até encarar diretamente o espectador.

    Temporada (2018) é o segundo longa do diretor mineiro André Novais Oliveira e conta a história de Juliana, vivida por Grace Passô, uma mulher que se muda para a periferia de Contagem após ser chamada num concurso público que prestou há dois anos. Diferente de Café com Canela, o olhar para câmera da protagonista em Temporada é mais sutil. Juliana está com Hélio, seu colega de trabalho, e é a primeira vez que os dois conversam sobre aspectos íntimos de suas vidas, como suas relações familiares e suas perspectivas para o futuro; o que pode mostrar uma maior cumplicidade não só entre os amigos, mas entre personagem e espectador.

    Acreditamos que ato de personagens negros olharem para a câmera aqui pode significar uma tomada de lugar no exercício de fazer cinema e uma subversão das representações até então pensadas para pessoas negras na frente, mas também atrás das câmeras, num papel ativo e num ato de não só falar com, mas de desafiar o espectador e o próprio cinema. Ao falar da resistência do espectador negro, Manthia Diawara diz que “um dos papeis do cinema negro independente (…) deve ser elevar a consciência do espectador sobre a impossibilidade de uma aceitação acrítica dos produtos de Hollywood” (Diawara, 1993, p. 219, tradução própria). Portanto, interessa saber em qual medida os dois filmes provocam o espectador negro a criar certa relação com o cinema proposto por seus diretores.

    Assim, podemos pensar em investigar (1) possíveis interpretações para o olhar para a câmera de personagens negros dentro da trama dos filmes e em seu contexto social e político e (2) a possibilidade de o olhar desses personagens transpor o espaço da tela e desafiar a espectatorialidade negra a se identificar com o cinema proposto por estes diretores. Faremos isso analisando os filmes supracitados e os percursos de seus realizadores, entendendo esse olhar como um gesto de resistência (hooks, 1993) e uma escolha estética que é também política.

Bibliografia

    CARVALHO, Noel dos Santos. Cinema e representação racial: o cinema negro de Zózimo Bulbul. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
    DIAWARA, Manthia. Black Spectatorship: Problems of Identification and Resistance. In DIAWARA, Manthia (Org.), Black American Cinema, New York: Routledge, 1993.
    GUNNING, Tom. The Cinema of Attractions: Early Film, Its Spectator and the Avant-Garde. WideAngle, v. 8, n. 3-4, outono 1986. Republicado em: ELSAESSER, Thomas (org.). Early cinema: space, frame, narrative. Londres: BFI, 1990.
    hooks, bell. The Oppositional Gaze: Black Female Spectators. In DIAWARA, Manthia (Org.), Black American Cinema, New York: Routledge, 1993.
    JULIEN, Isaac; MERCER, Kobena. Introduction: De Margin and de Centre. Screen 29.4 (1988): 2–11.
    MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 Edições, 2018.
    STAIGER, J. Media Reception Studies. Nova Iorque: New York University Press, 2005.