Ficha do Proponente
Proponente
- Denise Costa Lopes (PUC-Rio)
Minicurrículo
- Professora do Departamento de Comunicação da PUC-Rio nos Cursos de Cinema e Arte e Design, Doutora em Artes Visuais pelo PPGAV/EBA/UFRJ, com bolsa sanduíche da CAPES na Université Lumière Lyon 2 e aulas na Sorbonne Nouvelle, Paris 3, Mestre em Comunicação, Imagem e Informação pelo PPGCOM do Departamento de Cinema e Vídeo da UFF, Bacharel em Comunicação Social pela ECO/UFRJ. Jornalista e Crítica de Cinema.
Ficha do Trabalho
Título
- AS CABANAS DE VARDA. Ato político e estético que problematiza o exibir
Resumo
- Les créatures (1966), fracasso comercial de Agnès Varda, passou 40 anos invisível até seu negativo ser remontado em Ma cabane de l’échec. Ao reciclar a película, denunciando a perversão do circuito de projeção tradicional, promoveu nova engenharia de exibição crítica ao dispositivo do cinema, abrindo uma perspectiva arqueológica das mídias que serviram ao desejo da imagem em movimento desde as cavernas. Ato político e estético, agenciou formas de construção de presenças, significações e afetos.
Resumo expandido
- Fracasso comercial e crítico de Agnès Varda de 1966, o longa Les créatures passou 40 anos invisível e esquecido até seu negativo de 35mm ser remontado como “parede” de Ma cabane de l’échec, na mostra L’île et elle da Fundação Cartier de Paris. A reciclagem da película abandonada, que segue o fundamento básico de sua obra, construído a partir da pintura Des Glaneueses (1857), de Jean-François Millet, promoveu uma nova engenharia de exibição, crítica ao dispositivo clássico da reprodutibilidade técnica do cinema. O found footage, impresso na “arquitetura da transparência” da cabana, que posteriormente ganhou o nome de La cabane du cinéma, fez desaparecer o aparato do circuito tradicional com suas salas, telas e aparelhos de projeção, denunciando a ineficácia e a relação perversa e destrutiva desse modelo.
Como ato político e estético de luta contra o apagamento de seu filme e o desaparecimento do público do cinema, criou um novo regime de visibilidade fílmica, que denuncia a construção, explicita o material e promove a inserção do agenciador do processo de edição dos fotogramas, afirmando assim, segundo Luc Vancheri, “a pobreza ontológica do cinema e a riqueza de um regime contemporâneo de arte que torna possível tais deslocamentos” (2013, p. 101). O visitante da cabana é convidado a habitar um novo cinema, a entrar e a morar na imagem. “Parece que sempre habitei ali (…) que nunca vivi fora do que é cinematográfico”. (VARDA apud VANCHERI, 2013, p.108). Indagada se sua cabana seria cinema, ela responde: “É cinema já que a luz é retida por imagens” (id., p.102).
Ao provocar uma nova fruição das imagens de seu longa, Varda teria acabado ou, pelo menos, diminuído as distâncias, as analogias e dessemelhanças da arte feita de imagens, criticadas por Jacques Rancière. A performance ficcional, varrida da sua ontologia visível e dizível, surge como ressurreição material na transcendência imanente do corpo fílmico exposto, conferindo uma outra destinação à obra. Mais potente, política e plena de significações do que quando pensada nos anos 60. A partir da política das imagens proposta pelo pensador, poderíamos identificar ainda na construção de Varda a urgência solicitada por este do cinema compreender “sua própria utopia histórica” de promover o casamento entre olhar e movimento. La cabane du cinéma trabalharia assim no que ele chama de arquissemelhança, “uma semelhança originária (…) que não fornece a réplica de uma realidade, mas o testemunho imediato de um outro lugar, de onde ela provém” (RANCIÈRE, 2012b, p.17).
Por último, La cabane du cinéma engendra outras formas constitutivas de presença e potencializa forças de significação e afeto paradoxalmente antagônicas. A materialidade da película sob a luz das salas dos museus confere um novo lugar tangível aos corpos que passeiam imersos aos fotogramas pendurados. Ao traçar uma ponte indubitável entre sua cabana, as instalações audiovisuais atuais, as pinturas nas cavernas do Paleolítico, toda edificação de domos e vitrais das igrejas e os panoramas arquitetônicos do século XVIII ao XX, Varda insere também uma perspectiva arqueológica das mídias que serviram ao desejo de reprodução do movimento ao longo dos tempos. Como nessas experiências que se utilizavam de efeitos luminosos, as sombras dos transeuntes se projetavam sobre as partes da película translúcida que os rodeavam, numa troca intermitente entre o estar dentro e o estar fora, ou diante, da imagem, sobrepondo e amalgamando obra e espectadores. Esse singular lugar do corpo fílmico em oposição, ou de frente, ao corpo dos participadores, que agenciam e montam a obra por uma outra lógica, poderia potencializar, como apontado por Hans Ulrich Gumbrecht, algum estado de epifania capaz de produzir a presentificação de mundos passados e partilhar não só as memórias autobiográficas de Varda, como as das técnicas e experiências estéticas que o desejo de reprodução da imagem em movimento edificou desde o início da existência humana.
Bibliografia
- COMMENT, Bernard. Le XIXe siècle des panoramas. Paris: Société Nouvelle Adam Biro, 1993.
DUBOIS, Philippe. Movimentos improváveis. O efeito cinema na arte contemporânea. Rio de Janeiro: Catálogo do Centro Cultural Banco do Brasil, 2003.
ELSAESSER, Thomas. Cinema como arqueologia das mídias. São Paulo: Edições Sesc SP, 2018.
GUMBRECHT, Ulrich. Produção de Presença. O que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora PUC-Rio, 2010.
MACHADO, Arlindo. Pré-cinema e pós-cinema. São Paulo, Campinas: Papirus, 1997.
RANCIÈRE, Jacques. As distâncias do cinema. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012a.
__________. O destino das imagens, Rio de Janeiro: Contraponto, 2012b.
VANCHERI, Luc. A arquitetura ou o mais simples aparelho do cinema In Revista Arte & ensaios nº 25. Rio de Janeiro: PPGAV/EBA/UFRJ, 2013.
__________. Les cabanes de Varda. De l’échec au cinéma In BISERNA, Elena e BROWN, Precious (org.). Cinéma, architecture, dispositifs. Capanotto: Pasian di Prato, 2011.