Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    Ilana Feldman (USP)

Minicurrículo

    Ilana Feldman é pós-doutora em Teoria Literária pela UNICAMP e doutora em Cinema pela USP, com passagem pelo Departamento de Filosofia, Artes e Estética da Universidade Paris 8, onde desenvolveu a tese “Jogos de cena: ensaios sobre o documentário brasileiro contemporâneo”. É mestre em Comunicação pela UFF e graduada em Cinema na mesma universidade. Atualmente, realiza pós-doutorado na ECA-USP, com pesquisa entre cinema e literatura, sobre testemunho, luto e autobiografia.

Ficha do Trabalho

Título

    Testemunho, legibilidade e sobrevivência das imagens

Seminário

    Cinema comparado

Resumo

    A comunicação “Testemunho, legibilidade e sobrevivência das imagens: a escrita como mortalha, o cinema como lápide” pretende, face à opacidade do testemunho e à violência de Estado, investigar, por meio de uma perspectiva comparatista, as formas pelas quais a escrita e o cinema podem produzir condições de legibilidade da história a partir da criação de visibilidades, mesmo quando é difícil sustentar o olhar.

Resumo expandido

    “Tornei-me escritora para encontrar meios de dar uma sepultura aos meus mortos. Eu tinha de tirá-los da vala comum e a solução que se apresentou para mim foi a de construir uma sepultura com as palavras. Fazer um túmulo de papel e poder assim esperar passar pelo meu luto”, diz a escritora africana Scholastique Mukasonga, sobrevivente do genocídio dos Tutsi em Ruanda, para quem a escrita exerce a função de mortalha, seja para sua própria mãe ou para os outros, desconhecidos. Também o cineasta Rithy Panh, sobrevivente do processo de extermínio da burguesia cambojana liderada pelo Khmer Vermelho, dedicou sua vida a construir uma obra composta por documentos e testemunhos vivos do massacre, definindo seu cinema como “lápide”. Em sua obra, os vestígios do passado impregnam o presente e cada filme decorre de um trabalho reiterado de luto por parte do cineasta e de seus personagens. Fazendo filmes contra o esquecimento, empenhados em restituir um rosto, um nome, uma língua e um país àqueles que foram exterminados, Rithy Panh tem afirmado: “Trinta anos depois, os Khmers Vermelhos continuam vitoriosos: os mortos estão mortos e foram apagados da superfície da terra. Sua lápide, somos nós” (Panh, 2011, p. 205, apud Leandro, 2016).

    Por meio de uma perspectiva comparatista entre cinema e literatura, a proposta de comunicação “Testemunho, legibilidade e sobrevivência das imagens: a escrita como mortalha, o cinema como lápide” pretende, face à opacidade do testemunho e a formas extremas de violência de Estado, perda e desaparecimento, investigar as formas pelas quais a escrita e o cinema podem produzir condições de legibilidade da história a partir da criação de visibilidades, mesmo quando parece difícil sustentar o olhar. Para tanto, será preciso analisar as invenções formais de certas produções cinematográficas e literárias (documentários, ficções, relatos autobiográficos, ensaios) e as relações críticas que elas vêm estabelecendo com os campos teóricos do testemunho, dos estudos do trauma, das escritas de si e do pensamento a respeito do arquivo. Para tal intento, partiremos da premissa de que uma “política da sobrevivência” não efetiva sem uma “política da resistência” (Didi-Huberman, 2017).

    Iremos privilegiar obras que, resistindo aos modelos de transparência narrativa, operam como modos de narração que colocam em questão os limites da representação, trabalhando a partir da opacidade dos relatos e tendo como horizonte – ético, estético e político – a produção de uma legibilidade para eventos e experiências históricas que, à primeira vista, parecem ilegíveis ou irrepresentáveis. Tal é o caso do testemunho visual, de vinte e um minutos, de Samuel Fuller no momento da liberação do campo de Falkenau (1945); das nove horas e meia de “Shoah” (1985) e das quatro horas de “O último dos injustos” (2016), de Claude Lanzmann; dos filmes de Rithy Panh, em especial “A imagem que falta” (2013) e “Túmulos sem nome” (2018); dos ensaios “Imagens do mundo e inscrição da guerra” (1988) e “Respite” (2007), de Harun Farocki; de Hiroshima, meu amor (1959), de Alain Resnais, e “Eu quero ver” (2008), de Joana Hadjithomas e Klhalil Joreige; e de “Nostalgia da luz” (2010), de Patricio Guzmán.

    No contexto de uma virada testemunhal nos estudos da cultura e de uma sociedade, simultaneamente, marcada pela catástrofe e mediada pela imagem, é preciso, portanto, como tarefa política urgente, interrogar o que pode o cinema face à violência de Estado. Por meio de um trabalho de montagem e criação de arquivos que torna visível, faz audível e permite que o efeito de “invisibilidade” e “mutismo” gerado pela violência traumática passe a ser legível, o cinema pode empreender um trabalho de luto que visa à sobrevivência e à transmissão, fazendo da estética do testemunho uma política do testamento. Só assim, quem sabe, poderemos abrir os olhos diante de “histórias impossíveis de contar”.

Bibliografia

    DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Acompanhado de “Alguns pedaços de película, alguns gestos políticos”, entrevista a Ilana Feldman. São Paulo: Ed. 34, 2017.
    _____________. Imágenes pese a todo. Barcelona: Paidós, 2004.
    _____________. Remontagens do tempo sofrido: o olho da história, II. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2018.
    ______________.Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: UFMG, 20118.
    FELDMAN, Ilana. “Imagens apesar de tudo: problemas e polêmicas em torno da representação, de ‘Shoah’ a ‘O filho de Saul’”. In: Revista ARS, ECA/USP v.14, n.18, 2016.
    LEANDRO, Anita. “Um arquivista no Camboja”. MAIA, Carla; FLORES, Luís Felipe (Orgs.) O cinema de Rithy Panh. Centro Cultural Banco do Brasil, 2013.
    LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
    MUKASONGA, Scholastique. A mulher de pés descalços. São Paulo: Editora Nós, 2017.
    ROLLET, Sylvie. Une éthique du regard: Le cinema face à la catastrophe. Paris: Hermann, 2011.
    WIEVIORKA, Annette. L’ère du témoin. Paris: Hachet, 2009.