Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    Cristiana Miranda Soares de Moura (PPGARTES/UERJ)

Minicurrículo

    Cineasta experimental e professora do ensino superior no campo das artes da imagem, da fotografia e do cinema. Graduação em Sociologia pela PUC-RJ, Mestrado pelo PPGCOM/UFRJ. Doutoranda em artes no PPGARTES/UERJ. Como curadora, organiza a mostra Dobra Festival Internacional de Cinema Experimental (Rio de Janeiro) e realizou diversos programas de cinema experimental para Festivais Internacionais. Em 2017, foi agraciada com uma retrospectiva de seus filmes na Cinemateca do MAM-RJ.

Ficha do Trabalho

Título

    Por um cinema líquido – interrogar a história e experimentar o cinema

Resumo

    Apresentar o cinema como uma experiência líquida que se realiza a partir de uma imersão no ambiente de escuridão onde se dá a revelação da imagem. O uso livre e criativo do antigo maquinário do cinema analógico dentro de uma proposta “digitópica”. A experiência líquida da revelação e a recuperação dos processos imaginativos associados aos experimentos visionários. Interessa não apenas o que está visível na imagem, mas também o processo de criação dessa visibilidade.

Resumo expandido

    A proposta de cinema aqui apresentada parte de uma posição desavergonhadamente utópica. Pretendo apresentar um outro cinema, disposto a superar os limites daquilo que se costuma chamar “o cinema dominante”. Essa proposta está irremediavelmente ligada ao cinema independente e experimental, ainda que não procure recuperar a sua tradição. Trata-se principalmente de desmistificar o processo de produção cinematográfica e perturbar a barreira existente entre o “público” e o “produtor”.
    Com as “sucatas tecnológicas” do cinema que são as antigas câmeras 16mm, filmes vencidos que encontro em cinematecas e produtoras e a revelação manual das imagens criadas, faço um cinema de “gambiarrotecnologias”. Um cinema que lança um olhar crítico para os padrões impostos pelo uso comercial das máquinas cinematográficas. Proponho filmes que fazem uma crítica à forma como ideias e imagens coloniais, machistas e racistas são apresentadas como verdades auto evidentes. Um cinema que está atento a política da representação e busca entender seus diversos códigos e estratégias para criar novas imagens, que expressem anseios dissidentes.
    Minhas maravilhosas máquinas “gambiarrotecnológicas” que filmam com mecanismos de corda, habitam os lugares da luz e os lugares da sombra. Quando se filma com película é preciso revelar a imagem para que ela surja no filme. Nesse momento entramos na cozinha do cinema. O laboratório cinematográfico é uma sala escura e úmida, onde o filme é submetido aos banhos do processamento fotoquímico.
    Filmar com câmeras 16mm em plena segunda década do século XXI não é uma escolha inconsequente. Para defende-la gostaria de evocar um conceito proposto pelo cineasta Jonh Akomfrah, ainda que num primeiro momento ele pareça referir-se a um projeto cinematográfico incompatível com o uso do filme. Trata-se da ideia de “digitopia”. A tecnologia digital chega ao mundo da imagem na década de 80 do século passado, em nosso chamado terceiro mundo ela se torna majoritariamente usada pelos profissionais da imagem apenas na virada do milênio. O século XXI trouxe, já na sua primeira década, o desmonte da indústria cinematográfica analógica e sua substituição por novas máquinas de imagem, fabulosas máquinas digitais que traziam consigo empolgantes promessas.
    O novo estatuto da imagem surgido com a tecnologia digital implicou não apenas em um novo parque tecnológico, ele trouxe também um parque abandonado, cujo maquinário se tornou obsoleto. As antigas máquinas analógicas, descartadas pela tecnologia da imagem digital, tornaram-se disponíveis para um outro uso. Filmar em 16mm hoje é uma aposta nas possibilidades transformadoras que surgem quando as potências criativas do material fílmico são experimentadas de forma livre. Proponho usar a câmera 16mm e processar manualmente a imagem sem as amarras dos padrões fotoquímicos da indústria do entretenimento, cujo padrão é racista e colonial. Nesse sentido a digitopia pode incluir também a libertação das antigas máquinas analógicas. Lançadas aos porões do desuso comercial, elas têm seu uso recriado por novas propostas, atentas a dimensão histórica das tecnologias da imagem enquanto proposições perceptivas mágicas e libertadoras.
    O cinema é uma experiência de imersão que tem raízes muito antigas. Antes do cinematógrafo os dispositivos óticos do século XVIII já alimentavam o desejo por um espetáculo de ilusionismo total que sempre motivou as utopias cinematográficos. Essa imersão que caracteriza o cinema é uma experiência que precisa acontecer dentro da escuridão. Todos sabemos o quanto é frustrante ver a projeção de um filme em ambiente de muita luz, mas para o cinema analógico a escuridão é necessária não apenas no momento da exibição do filme, ela também é fundamental no aparecimento da imagem. Dentro do laboratório cinematográfico a criação da imagem é resultante do processo de estar no escuro. Nessa escuridão o filme mergulha nos líquidos da revelação.

Bibliografia

    Akomfrak, John. Espectros da diáspora. Rio de Janeiro: CCCBB, 2017.
    BENJAMIN, Walter. Textos escolhidos Sociologia. São Paulo: Editora Ática, 1985.
    BLANCHOT, Maurice. L’espace littéraire. Paris: Gallimard, 1955.
    BRENEZ, Nicole. Cinémas d’avant garde. Paris: Cahiers du Cinémas, 2002.
    DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. São Paulo: Contracampo, 2016.
    DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha, São Paulo: Editora 34, 1998.
    FARGE, Arlette. Lugares para a história. Belo Horizonte: Autêntica. 2011.
    FOSTER, Hal. O retorno do real. São Paulo: Cosac&Naif, 2014.
    FREUD, Sigmund. (1899) Lembranças Encobridoras. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
    LACAN, Jacques, O Seminário Livro 11: Os quarto conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
    MACHADO, Arlindo. Made in Brasil: três décadas do video brasileiro. São Paulo: Iluminuras, 2007.