Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    Andrea França Martins (PUC-Rio)

Minicurrículo

    Professora Associada do PPGCOM da PUC-Rio. Doutora em Comunicação pela UFRJ. Pesquisadora do CNPq.

Coautor

    Nicholas Andueza (UFRJ)

Ficha do Trabalho

Título

    O gesto ausente: sobre a mão e o macaco

Seminário

    Montagem Audiovisual: reflexões e experiências

Resumo

    O prólogo de Natureza Morta (Susana de Sousa Dias), composto pelo movimento de um macaco em direção à mão de um homem, estabelece o motivo visual do filme. Por uma opção de montagem, a cena não se completa: perdem-se de vista a mão e o macaco antes mesmo que terminem seus movimentos. Tal lacuna produz o que chamamos de “gesto ausente”. Pretende-se, assim, expandir a noção de “camadas de ausência” (França e Andueza, 2018) para lidar com esse gesto que marca a mise-en-scène do filme.

Resumo expandido

    Da tela preta nasce um clarão branco e um ruído rascante. Surge um enquadramento que se move da direita para a esquerda, acompanhando o caminhar de um macaquinho na direção de uma mão humana que parece aguardá-lo. A desaceleração da imagem nos faz sentir a transição de cada frame, a aparição de cada ranhura nos tons de cinza que formam a cena. O primata, enquadrado de corpo inteiro, traz uma postura de autoproteção. Na lateral esquerda da imagem, no destino do macaco, vemos a mão aberta. À medida em que o macaco avança, porém, a mão recua, e a distância entre os dois, como no paradoxo de Zenão, permanece inalterável. O som se torna agudo. Ao fundo, sobre o chão de terra árida, vemos a sombra de um corpo, cuja mão ali está. O macaco então acelera, ergue os braços, como se quisesse saltar na direção da mão. Mas a imagem engasga; e some. Não sabemos o que acontece ao primata…

    Esse é o prólogo de Natureza morta (2005), de Susana de Sousa Dias, cujas imagens foram todas produzidas no período Salazarista, também conhecido como regime político do “Estado Novo” em Portugal (1933-1974). Apesar de ser um filme discutido e visitado no campo do cinema de arquivo, pouco se disse sobre esse início tão revelador da dinâmica do filme: o gesto que não se completa. A mão que se abre pode tanto acolher o macaco como abatê-lo. Há a insinuação do gesto que parece brotar na tela para formar uma esfinge, insinuando a brutal ambivalência das imagens produzidas pelo regime ditatorial de Antonio Salazar e igualmente das imagens retomadas.

    A desaceleração do movimento, produzida na mesa de montagem, decompõe e mecaniza cada ser vivo num frame-a-frame – nos desfiles, nas colônias portuguesas da África, nas multidões urbanas que saúdam o ditador. Homens, mulheres, crianças e animais tornados autômatos, mas ainda assim animados para fins de exame, de diagnóstico e, no limite, de abstração. Ao cortar o continuum do movimento dos seres antes mesmo de sua completude, Dias retira dele suas motivações e finalidades, de modo a formular uma expropriação do gesto: o primata que se aproxima da mão, no prólogo; o fade in incompleto da bandeira portuguesa que logo volta à escuridão da tela; a mão de uma autoridade católica que se aproxima da cabeça de uma criança. Para Dias, o estranhamento provocado por essas incertezas visuais ressaltariam “pontos de doença” nas imagens, elementos sintomáticos que avisam sobre algo de invisível que habita aquilo que assistimos (SOUSA DIAS, 2012). No filme, ultrapassar a dimensão meramente expressiva ou convencional do gesto é aproximar o espectador de sua dimensão sintomática ou, nos termos de Walter Benjamin, do “inconsciente ótico” do material retomado (1985, p.94). Material que, se reproduzido em sua velocidade nativa, tomaria apenas 12 minutos, ganha, no filme, uns 70 minutos.

    Por que, junto a todas as indefinições operadas no material, se busca um gesto (da mão, do macaco) que não se completa? O que isso nos conta sobre a imagem em movimento decomposta, mecanizada, alongada no tempo, quase abstraída de suas configurações? Neste estudo pretendemos expandir a noção das “camadas de ausência” (FRANÇA e ANDUEZA, 2018), que habitam o cinema de arquivo (imagens desaparecidas, falta de informações históricas, invisibilizações feitas pela própria imagem), para abordar uma mise-en-scène de arquivo fundada na expropriação do gesto.

    Assim, a ausência é entendida como elemento que não para de se modificar, que multiplica os sentidos e os tempos de uma imagem e que tem algo a dizer. A interrupção do gesto produz, nesse sentido, um gesto ausente, motivo visual reiterado e elementar à fantasmagoria de Natureza morta. Como propõe Jean Epstein, “na tela, a qualidade essencial do gesto é não terminar” (1974, p.66). A abstração que marca o gesto ausente é exatamente o que o torna muitos de uma só vez, multiplicando a forma de se experimentar os arquivos e os modos de pensar a memória e a cultura audiovisual.

Bibliografia

    BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1985.

    DIAS, Susana de Sousa. Corpos estranhos ou (des)igualdades inscritas na película. 2012. Disponível em: . Acessado em: 10/04/2019.

    DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

    DOANE, Mary Anne. The Emergence of Cinematic Time. Cambridge: Harvard University Press, 2002.

    EPSTEIN, Jean. Écrits sur le cinéma: tome 1. Paris: Éditions Seghers, 1974.

    FRANÇA, Andréa e ANDUEZA, Nicholas. “Camadas de ausência e a produção de sentido através do cinema de arquivo”. Revista do Arquivo n.6, abril de 2018.

    POIVERT, Michel. L’Événement comme expérience: les images comme acteurs de l’histoire. Paris: Hazan, Jeu de Paume, 2007.

    VASCONCELLOS, Lisa Carvalho. Sobre Arquivos e fantasmas. Olho d’água, São José do Rio Preto, n.6, v.2, jul. – dez. 2014, pp. 71-77.