Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    Isaac Pipano Alcantarilla (UFF)

Minicurrículo

    Isaac Pipano é doutor em Comunicação pelo PPGCOM (UFF). Coordenador acadêmico do Filmworks – Curso técnico em direção cinematográfica da AIC (RJ). Membro do projeto Inventar com a Diferença – cinema, educação e direitos humanos. Sua pesquisa tem se dedicado à interface entre cinema e processos subjetivos, com destaque para trabalhos realizados nas escolas.

Ficha do Trabalho

Título

    Camerar pontos-de-ver: as crianças autistas e as teorias de cinema

Mesa

    Cinema, território, subjetivação II

Resumo

    Ao longo de algumas décadas de trabalho com crianças autistas, Fernand Deligny produziu uma obra não-acadêmica na qual elabora uma série de conceitos que forjam um embate frontal com as teorias cinematográficas canônicas. Nesta comunicação gostaríamos de reintroduzir duas dessas noções – camerar e ponto-de-ver. Ao propormos uma revisitação ao pensamento do autor, procuramos nos indagar sobre a pertinência de tais conceitos no tocante à dimensão ética, política e estética das imagens.

Resumo expandido

    Em Le point de vue, Alain Bergala escreve que o ponto de vista é essencial à toda pedagogia do cinema, por ser o conceito que permite aproximar diferentes níveis da forma cinematográfica. Mas, sobretudo, é uma questão de moral: o tratamento do ponto de vista num filme é um critério de avaliação da ética do cineasta em relação ao espectador. Para Bergala o ponto de vista é a questão que atravessa a totalidade das fases de criação de um filme, pois articula, sem artifício ou esforço, a forma e o conteúdo do filme, sua estilística e seu discurso, a análise do detalhe e a análise do todo. Bergala afirma que, embora o ponto de vista adquira essa importância nos estudos cinematográficos, os trabalhos seguem emprestando seus conceitos das teorias literárias sem considerar a especificidade do contexto cinematográfico. Para o autor, as teorias falham à medida que definem o ponto de vista em função quase que exclusivamente do eixo da câmera, sem considerar os outros inúmeros fatores que lhe compõem.
    Contrariando os pressuspostos teóricos de Alain Bergala, gostaríamos de sugerir um caminho mais extravagante, assumindo que uma ética da imagem conectada ao ponto de vista como princípio ontológico estará fadada a sucumbir sob o jugo da representação ao atrelar-se ao regime escópico. Sendo assim, somente desfundando o ponto de vista como perspectiva privilegiada de onde se pode ver e saber – arruinando o lócus identificador do sujeito – é que estaremos efetivamente nos abrindo a uma pedagogia das imagens não subordinada pelos imperativos da representação: à procura de uma ética sem fundamento.
    É algo semelhante o que fala Fernand Deligny, educador francês cuja vida foi dedicada ao trabalho com crianças “difíceis” – delinquentes, órfãos – e sobretudo as autistas mudas ­– em seu cinema compartilhado: diante dessas crianças, assiste-se ao desabamento da linguagem falada, dando a ver sujeitos para os quais a comunicação como a concebemos, de maneira racional e racial, não produz significado. Deligny critica o vocabulário cinematográfico francês que emprega o radical filmer (filmar, mesmo verbo que adotamos no português) para designar a ação de captação de imagens e sons pelo aparato audiovisual. Para Deligny, tal forma de designar o cinema revela o endereçamento ao objeto fílmico, como um processo-fim. Esta é a razão pela qual ele imagina o conceito camerar, cujo sentido está muito mais relacionado à ação de captar as imagens do que propriamente o fechamento em uma obra. Num mundo que não distingue o balanço da pedra e o ruído da água com o da língua com que falam os humanos em seus gabinetes, leis, receitas e enciclopédias, reportar-se ao processo como primazia, em detrimento das obras, é uma forma de situar-se ao lado daqueles para quem a linguagem não é produtora de sentido.
    Como coloca Sandra Alvarez de Toledo (seguindo as pistas de Deligny…), aquele que tem um ponto de vista ocupa uma posição – posição esta que só pode ser localizada no mundo da linguagem. É por isso, então, que ela sugere uma substituição, a partir da mesma preferência pelo uso dos infinitivos adotada por Deligny. Em vez da ditadura do ponto de vista, o agenciamento de um ponto de ver. Se o ponto de vista se define em função do posicionamento unívoco, mesmo quando é múltiplo; o ponto de ver pode abrir-se finalmente à multiplicidade, sem reservas. Com o ponto de ver, a imagem deixa ser a produção do olhar desde um sujeito para o mundo, para ser definitivamente algo que escapa ao encontro do sujeito com o mundo e a câmera. Forças e acoplamentos, fluxos de produção sensual, fora da ordenação que assume o ver como condição privilegiada da experiência com o sensível, modulada pela linguagem cinematográfica.

Bibliografia

    BERGALA, Alain. Le Point de vue. Scéren-L’éden cinéma, 2006.

    DE TOLEDO, Sandra Alvarez. Point de Vue / Point de Voir. Cadernos Deligny, v. 1, n. 1, p. 88–98, 2018.

    DELIGNY, Fernand. Oeuvres. Paris: l’Arachnéen, 2017.

    PELBART, Peter Pál . A arte de instaurar modos de existência que ‘não existem’. In: Bienal de São Paulo. (Org.). Como falar de coisas que não existem. 1ed.São Paulo: Bienal de São Paulo, 2014, v. 1, p. 250-265.