Ficha do Proponente
Proponente
- Douglas Resende (UFF)
Minicurrículo
- Professor do Departamento de Cinema e Vídeo da UFF e um dos coordenadores do Laboratório Kumã e do projeto Inventar com a Diferença: cinema, educação e direitos humanos.
Ficha do Trabalho
Título
- Do ver juntos ao montar juntos
Mesa
- Cinema, território e subjetivação I
Resumo
- A partir da vivência de um grupo de professores-cineastas, experimentamos modos singulares de nos relacionar com a prática do cinema, tendo o dispositivo e sua tensão entre limite e liberdade como uma força que mantém o grupo reunido. Nessa relação com o cinema, os momentos de ver juntos as imagens produzidas por cada um passaram a ser momentos de montar juntos, constituindo uma teia de conexões entre pessoas, territórios e trajetos pela cidade, numa singular forma de montagem compartilhada.
Resumo expandido
- Reunidos todos diante da tela, assistíamos a fragmentos dos trajetos cotidianos de cada um projetados da timeline do software de edição, onde os registros eram aos poucos inseridos. Um dos membros do grupo (formado por professores da universidade e da educação básica, e estudantes de cinema) operava o software ao mesmo tempo em que se mantinha ligado às conversas entre as projeções das imagens, reagindo às proposições de cortes, associações, rupturas, sobreposições. As imagens e sons de cada um do grupo eram colocados em relação, e junto delas vinha uma pluralidade de espaços, corpos, vozes, enquadramentos. Dessa mise en relation das imagens, dos olhares, se fazia um modo de montagem compartilhada a constituir uma teia singular que conecta territórios e trajetos até então dispersos no plano da cidade.
Desbaratado o controle do roteiro, criamos uma espécie de mapa – feito de objetos, recortes de textos e imagens, memórias – que apontava questões mobilizadoras entre as pessoas do grupo, fazendo-se também – e sobretudo – experiência de um modo de estabelecer relações fora dos modelos cartesianos e logocêntricos da narrativa e da representação. São antes imagens, linhas, volumes, colagens, cores, ideias, sentimentos que são colocados num mesmo plano produzindo novas, estranhas e inesperadas associações, a partir das quais daríamos continuidade ao processo de montagem dos registros audiovisuais.
Uma vez formado, o maior desafio de um grupo é o de manter a relação – o seu maior e mais constante risco, o da dispersão (DESANTI, 2003).
Nas muitas ocasiões em que nos reunimos para ver as imagens criadas por cada um, inventamos um modo de estar juntos, sustentado pela tensão colocada pelo dispositivo entre limite e liberdade, controle e espontaneidade. Como bem nos escreveu uma das professoras-cineastas sobre nossa experiência com os dispositivos: “A experiência partiu do não-controle, o que difere de pautar-se no descontrole total. Significa estabelecer caminhos e acordos em comum; criar a partir do que se tem; se abrir para um processo coletivo de criação que terá imprevistos; saber lidar com as incertezas sem buscar controlá-las, mas incluindo na criação.”
Essa nossa maneira de estar juntos para ver as imagens criadas por uns e outros se desdobrou então na forma muito singular de uma montagem compartilhada, tecida de planos e sequências feitos dos trajetos de cada indivíduo e da relação de cada um com os dispositivos. O dispositivo é a um só tempo um tensor de multiplicidade e um espaço comum onde cada presença do grupo tem a liberdade de expressar suas singularidades ao mesmo tempo em que se mantém situado nos limites formais acordados coletivamente. É um modo de manter a relação, de agir contra a ameaça iminente da dispersão, ao qual todo grupo está constantemente sujeito.
É também a invenção de um modo de ver e de ser visto, ao mesmo tempo – pois “ver juntos é vermos uns aos outros e não vermos todos a mesma coisa” (COMOLLI, 2012, p. 174). Assim, as imagens que cada um lançava em direção ao grupo passava a ser do grupo, onde era reapropriada, montada – ou seja, colocada em relação com as outras – num movimento do individual ao coletivo, do singular ao plural. Uma outra professora-cineasta nos escreveu: “Os encontros, ensaios e dispositivos se mostraram como exercícios dos sentidos. Experimentações dos modos de ver, ouvir, ser o outro, ser outro, ter o olho no olho do outro. Admitindo e incitando o aparecimento das insondáveis diferenças nas quais se acumulam contradições.”
Essa reciprocidade do olhar não se separa de um devir outro – é assim que poderíamos chegar à formulação do “eu é um outro”. E foi assim que “ver juntos” passou a ser “montar juntos”, onde o que cada um trazia se tornava, quando em relação, uma outra coisa ainda, produzindo enunciados coletivos e sentidos inesperados, conectando territórios diferentes e apartados, e tecendo novos trajetos de uma pequena comunidade de cinema que se formou ali.
Bibliografia
- COMOLLI, Jean-Louis. A cidade filmada. In: Ver e poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
___________________. Notes sur lêtre ensemble. In: Corps et cadre: cinéma, étique et politique. Paris: Verdier, 2012.
DELIGNY, Fernand. O aracniano e outros textos. Tradução Lara de Malimpesa. São Paulo: N-1 edições, 2015.
DESANTI; Jean-Toussaint; MONDZAIN, Marie José; D’ALLONES, Myriam Revault; LORAUX, Patrice; et al. Voir ensemble: douze voix autour d’un texte de Jean Toussaint Desanti. Paris, Gallimard, 2003Paris: Gallimard, 2003.
GUIMARÃES, César. O que é uma comunidade de cinema?. In: Revista Eco Pós: Rio de Janeiro, 2015 (pp. 44-56).
LAZZARATO, Maurizio. Art et travail. In: Parachute Revue d’art contemporain, Montréal, no. 122 (avril-mai-juin), 2006.
MIGLIORIN, Cezar [et al]. Cadernos do Inventar: cinema, educação e direitos humanos. Niterói: EDG, 2016.