Ficha do Proponente
Proponente
- Ericson Telles Saint Clair (UFF)
Minicurrículo
- Professor adjunto do curso de Produção Cultural da UFF. Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Possui mestrado em Comunicação pela UFF e graduação em Comunicação pela Uerj. Monge zen budista da tradição japonesa Soto-Shu. É autor de Gabriel Tarde e a comunicação: por um contágio da diferença.
Ficha do Trabalho
Título
- Corpo, desaceleração e resistência: Walker Series de Tsai Ming-Liang
Mesa
- Corpo, duração e finitude: Jarman, Tsai Ming-Liang e Black Mirror
Resumo
- O trabalho investiga as Walker Series do cineasta malaio Tsai Ming-Liang como um potente dispositivo de resistência à cultura de aceleração capitalista. Em exaustão, nossos corpos têm aderido acriticamente à padronização da percepção por operações midiatizadas. Em contraponto, a ênfase de Tsai opera no regime da apreciação do fluir, incorporando a impermanência e a incompletude. Explora o processo como fim, fazendo da corporeidade do espectador a usina de criação do espaço-tempo do “entre”.
Resumo expandido
- O presente trabalho analisa os filmes da chamada Walker Series (“Séries do Caminhante”, em tradução livre), do cineasta malaio Tsai Ming-Liang. Defende-se que as referidas obras operam como um potente dispositivo de resistência à cultura de aceleração das sociedades capitalistas contemporâneas. Entre 2012 e 2014, Tsai Ming-Liang produziu seis filmes experimentais com variações sobre uma mesma temática: um monge budista (vivido pelo ator Lee Kang-Sheng) caminha muito lentamente por diversos cenários urbanos. Argumenta-se que a justaposição da rapidez dos movimentos citadinos com a extrema vagarosidade do caminhante contribui para que se construa um interessante artefato de resistência à cultura de aceleração.
Em vigoroso ensaio, Jonathan Crary (2014) alerta para o empobrecimento perceptivo decorrente da extenuação dos corpos na atualidade. Instados para produtividade incessante, diante de uma cultura de valorização da performance social, aderimos acriticamente à padronização da percepção por operações repetitivas, mediadas frequentemente por telas luminosas de dispositivos tecnológicos. Como resultado, a percepção humana (em especial, a visão) é reduzida a processos de homogeneização, redundância e aceleração. Como uma provocação a essa tendência, a riqueza das Walker Series de Tsai Ming-Liang não está na mera abordagem crítica à temática da aceleração. Em um gesto mais intensivo, Tsai propõe-se a inventar um dispositivo visual que produz a resistência no próprio corpo do espectador. O contato hipnótico com a lentidão extrema do caminhar do monge nos faz observar nossa própria observação, em uma versão transvalorada da descrição que Hans Gumbrecht faz do “observador de segunda ordem” (1998) produzido pela modernidade. A experiência do espectador torna-se inevitavelmente meditativa: somos conduzidos forçosamente à percepção nuançada de cores, sombras, sutilezas e intensidades da cena fílmica até então não experienciadas.
Os filmes que compõem as Walker Series – Walker (2012), No form (2012), Sleepwalk (2012), Diamond Sutra (2012), Walking on Water (2013) e Journey to the west (2014) – reconciliam o espectador com suas próprias durações e camadas temporais, na medida em que afrouxam as presilhas da atenção direcionada a fins específicos de performance e produtividade. A ênfase dos curtas está na produção ético-estética do fluir das coisas, entendendo como parte do processo vital a impermanência e a incompletude. Como sustenta François Jullien (1998), a ideia de eficácia ocidental, levada a extremo nas sociedades capitalistas, é pautada pela relação entre uma meta que se estabelece, um plano que se delineia e um conjunto de ações para concretizar tal plano. Esta concepção de temporalidade, derivada da tradição judaico-cristã, remete à imagem de uma linha reta delimitada, que avança do começo para o fim, com forte natureza direcional. O foco está na meta, e não no processo. Estabelecida a meta e o plano, todo o trabalho humano torna-se o esforço de aproximar um certo estado final das coisas à ideia inicialmente imaginada.
O cinema de Tsai Ming-Liang, pelo contrário, faz surgir no dispositivo fílmico outra dimensão espaço-temporal. A produção do “aqui=agora” dá-se diretamente a partir do contato com as imagens que nos invadem. Tsai explora, assim, o processo no lugar do fim. Cria uma espacialidade e uma temporalidade do “entre” ou aidagara, como intuiu o filósofo japonês Watsuji Tetsuro: aquilo que não se localiza dentro ou fora do sujeito, ressaltando a inevitabilidade da interconexão de todos os seres, e da impossibilidade de uma separação concreta entre sujeito e objeto. Deste modo, assistir ao filme não se restringe mais a evocar o sentido da visão, mas a convocar toda a corporeidade em um novo regime de atenção plena.
Bibliografia
- CRARY, Jonathan. 24/7 – capitalismo e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
GUMBRECHT, Hans. Modernização dos sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015
JULLIEN, François. Tratado da eficácia. São Paulo: 34, 1998.
KATO, Shuichi. Tempo e espaço na cultura japonesa. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.
LIM, Song Hwee. Tsai Ming-Liang and a cinema of slowness. Honolulu: University of Hawaii Press, 2014.