Ficha do Proponente
Proponente
- Maria Ines Dieuzeide Santos Souza (UFC)
Minicurrículo
- Maria Ines Dieuzeide é professora do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará. É doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMG, onde desenvolveu tese sobre as formas políticas do cinema de Elia Suleiman. Faz parte do grupo de pesquisa Poéticas da Experiência, da UFMG, onde atuou também na produção e edição da revista Devires – Cinema e Humanidades.
Ficha do Trabalho
Título
- Intervenção divina: exílio, olhar em cena, mediação burlesca
Seminário
- Cinemas pós-coloniais e periféricos
Resumo
- Nossa proposta de trabalho parte da análise de Intervenção divina (2002), o segundo longa da trilogia palestina de Elia Suleiman, instigadas pelo modo como, no filme, o olhar é posto em cena. Duas características se destacam: a duplicação da mediação (o corpo que olha) e a encenação do olhar, agenciado como arma de resistência. A partir delas, pensamos como o gesto de distanciamento, que atravessa a trilogia, é posto em cena como parte da experiência do exílio palestino.
Resumo expandido
- Intervenção divina (2002), o segundo filme da trilogia palestina de Elia Suleiman, conduzirá nossa reflexão neste trabalho. Instiga-nos o modo como se elabora uma passagem do personagem de um espectador-testemunha para um arranjador da cena fílmica por meio de seu olhar – o estabelecimento do olhar como mediação para a experiência do exílio palestino. O longa transcorre, em grande parte, no estacionamento do checkpoint entre Ramalá e Jerusalém, lugar onde se darão encontros silenciosos entre ES (o personagem interpretado pelo próprio diretor) e uma mulher misteriosa, impedida de entrar em Jerusalém. A permanência dos personagens nesse estacionamento, dentro do carro, coloca em evidência dois elementos fundamentais da construção fílmica: a figuração da mediação (a janela) e a encenação do olhar.
Ao colocar seu corpo em cena, atuando como personagem que é também cineasta, Suleiman parece duplicar o gesto da mediação, expondo-a. No filme, cineasta e protagonista compartilham do mesmo corpo, do mesmo nome, da mesma ocupação, mas não se deixam identificar plenamente com o narrador construído – o personagem constitui uma espécie de “duplo” do narrador/diretor. Se dizemos de uma instância narradora que se coaduna à experiência/olhar do protagonista, essa experiência é vista de fora, e o próprio filme coloca em cena outros olhares, multiplicando a postura observativa e a ação de olhar. Intervenção divina reverbera, formalmente, a centralidade do gesto de ver, de testemunhar, ao mesmo tempo em que a montagem, a criação dos espaços e a organização temporal afirmam a interposição da mediação e a impossibilidade da elaboração de uma narrativa unívoca e completa, priorizando os fragmentos e marcando a encenação com artifícios burlescos, que desordenam e ressaltam as aleatoriedades do mundo encenado.
Propomos então uma análise das operações que colocam em questão o ato de ver, para pensar como o filme todo incorpora, nas suas elaborações formais, um “modo de olhar” que, multiplicado, vai “descentrando” a narrativa. Intervenção divina, mais do que isso, parece indicar a possibilidade de que a própria experiência testemunhada seja atravessada pelo ato de ver, como se o distanciamento permitido ao gesto de elaborar e narrar se desse em cena, no interior e no desenrolar da situação testemunhada. A espectatorialidade dos personagens que testemunham altera o vivido em seu próprio acontecer dramático. O distanciamento não se interpõe apenas a nós, espectadores externos ao filme, mas passa a acontecer dentro da própria cena, que poderia ser modificada a partir, por exemplo, do gesto observativo e perspectivado de ES e da mulher. O gesto de distanciar deixa de ser apenas uma operação fílmica, que poderia “esclarecer” algo para o espectador do cinema, e passa a fazer parte da própria experiência palestina. No cinema de Suleiman, o olhar em cena parece fazer confluir a marca da mediação e a possibilidade de resistência: os jogos de duplicação da espectatorialidade, artifícios que expõem a mediação, são também responsáveis por desestabilizar a própria cena, desordenando-a ou acentuando seu caráter absurdo ou ridículo, duplicando e explicitando a distância que o filme elabora, especialmente pelos artifícios do burlesco.
Nossa hipótese é que a recusa da instância narradora em permitir que o espectador estabeleça com o filme uma relação de identificação reverbera a impossibilidade de que os próprios palestinos “pertençam” à cena vista, eles mesmos espectadores de suas vidas bloqueadas na fronteira. A experiência que se testemunha/vive no exílio interno é a da cisão entre um povo, seu território e sua história. O filme propõe uma forma para essa experiência, mas de modo que nós, espectadores, compartilhemos da ruptura, de uma impossibilidade de habitação: a partir da espectatorialidade complexa proposta por Intervenção divina, que se dá à distância, por fragmentos, rupturas e descontinuidades, compartilhamos de uma experiência de vida em exílio.
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