Ficha do Proponente
Proponente
- Milena de Lima Travassos (FIBAM – AESO)
Minicurrículo
- Doutora em Comunicação e Cultura (UFRJ). São seus focos de estudos: a teoria da imagem, a teoria e história da arte, a estética, dando ênfase ao audiovisual, à fotografia e às artes visuais. Artista visual ligada à fotografia, ao vídeo, à videoinstalação e à videoperformance. Professora nos cursos de Artes Visuais, Cinema e audiovisual, Fotografia, Jornalismo das Faculdades Integradas Barros Melo – AESO onde também ocupa o cargo de Coordenação de Pesquisa, Extensão e Intercâmbio.
Ficha do Trabalho
Título
- Os rostos, os olhos. O trecho
Seminário
- Corpo, gesto e atuação
Resumo
- Nossa análise está centrada em quatro filmes do diretor russo Andrei Tarkovski: “O espelho”, “Stalker”, “Nostalgia” e “O sacrifício”, especificamente em quatro cenas interpretadas por personagens femininos. As cenas foram escolhidas pela repetição de um gesto: as personagens voltam seus olhares para a câmera. Nas imagens esses olhares convertem-se em “trecho”. Zona perturbadora a durar instantes. Zona intensa que se torna outra coisa: olho-lança, olho-poço, olho-água-rasa e olho-mesa-posta.
Resumo expandido
- Marússia, a Esposa do Stalker, Eugênia e Maria são quatro personagens femininos dos filmes “O espelho”, “Stalker”, “Nostalgia” e “O sacrifício” do diretor russo Andrei Tarkovski. Elas representam papeis: uma mãe, uma esposa, uma tradutora e uma serviçal. Cumprem um roteiro. Nesse roteiro quatro cenas incomuns – o desenrolar desses filmes é repleto de cenas inusitadas, corpos que flutuam, sonhos – entretanto, essas, especificamente, destacam-se pela repetição de um gesto. Modulado diferentemente a cada filme esse gesto reaparece em todos eles. Trata-se de um rosto feminino que se volta para a câmera – dirige-se a nós. Dentro desse movimento um outro gestos ainda mais surpreendente: nesses rostos, seus olhos nos põem sob mira, convocam nosso olho – nos olham.
À sua maneira, cada cena é “devorada” por esse órgão da visão. O que ocorre não é uma desaparição, anulação da cena, mas sua intensificação. Em uma sala de uma casa estranha, em um quarto após a volta do marido, em um sonho do poeta russo ou em uma sala preparada para um jantar, os olhos das personagens irrompem e enfraquecem o entorno, sugam a atenção e expandem-se por todo o quadro. Nessa expansão há um centro, o olho. Menos por sua nitidez, mais pelo gesto.
Atento, novamente, para o gesto em questão: as personagens olham para a câmera – nos olham. Acontecimento perfeitamente identificável, mas, nem por isso, transparente. Gesto produtor de potencialidades, “algo se passa, passa, delira no espaço da representação e resiste a “se incluir” no quadro, porque provoca desorientação ou intrusão”. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 342-343). São olhos intrusos que ferem (Marússia), afundam (a Esposa), flutuam (Eugenia) e turvam (Maria) as imagens do qual são parte. Vincam as expressões faciais e com elas toda a imagem, toda a cena. Irrompem como por um acidente na cena. Cortam a narrativa despropositadamente, nos colocam em uma posição de incompressibilidade. Reinam soberanos e, de certa forma, destroem a cena, desviam seu caminho. Diante dessas cenas experienciamos o olho no olho. Os detalhes permanecem obtusos. Nessas cenas, de todos os detalhes, essa mirada é o mais obtuso. Dentro dessas imagens, ela converte-se em “trecho”.
Trechos são “sintomas”. Assim se refere a eles Didi-Huberman: “o trecho é o sintoma da pintura no quadro” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 335). Algo que deriva de uma lógica dos desejos, nele a imagem guarda algo de histeria, é rasgo por onde passa o precário, o parcial, o acidental. Insistente, é a parte da imagem que irrompe de forma ostensiva. O gesto nítido, a troca de olhares, turva nosso entendimento. Não trata-se de um detalhe, mas de um ponto expandindo-se.
É com essa expansão que dialogo e crio relações de fulguração. Relações que diferem-se de uma abordagem descritiva e exata que significa e reconhece um signo icônico. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 317 e 323). A descrição entra, em um momento inicial, enquanto esboço da cena. Enquanto escrita que relaciona ações, objetos, gestos e imagens. Meu desejo é percorrer um caminho até o “aceno” ocular. O gesto de rascunhar essas imagens não manterá parecença com uma fenomenologia – simbolizante – do reconhecimento, da identificação, da comparação, da busca pelo referente. O olho-olhar de que falo é “sintoma”, lampejo, efeito da imagem que é matéria fílmica – tempo e movimento.
Essas mulheres nos dirigem suas visadas, o gesto em si e a forma como isso ocorre as transformam em um “gesto insensato, informal, incompreensível, não icônico” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 333). Andrei Tarkovski orquestrou esses gestos, é seu autor, as personagens os encarnam. Nosso autor reconhece o poder de um rosto, a força de um olhar. Não enquanto artimanha a fazer ver a técnica, a ficção presente nos filmes, mas para nos capturar sem aprisionar nossos delírios. Zona perturbadora a durar por segundos ou minutos. Zona intensa que se torna outra coisa: olho-lança, olho-poço, olho-água-rasa e olho-mesa-posta.
Bibliografia
- AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.
ANTELO, Raúl. Potências da imagen. Chapecó: Argos, 2004.
BARTHES, ROLAND. O óbvio e o obtuso. Trad. Isabel Pascoal. Lisboa: Edições 70, 2009.
BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Trágico Alemão. Trad. João Barreto. Lisboa: Assírio e Alvim, 2004.
BENJAMIN, Walter. Ensaios reunidos: Escritos Sobre Goethe. São Paulo: Ed. 34, 2009.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II – Rua de mão única. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Brasiliense, 1995.
BREA, José Luis. Noli me legere – El enfoque retórico y el primado de la alegoria en el arte contemporáneo. Murcia: Cendeac, 1999.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem – Questões colocadas ao fim de uma história da arte. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 2013.
MOLDER, Maria Filomena. Símbolo, Analogia e Afinidade. Lisboa: Vendaval e a aurora, 2009.
TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2010.