Ficha do Proponente
Proponente
- Joice Scavone Costa (UFF)
Minicurrículo
- Doutoranda em em Estudos do Som no Cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF), atualmente leciona nas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA) e Academia Internacional de Cinema (AIC) do Rio de Janeiro.
Ficha do Trabalho
Título
- As “condições de estranheza” da voz em Doce Amianto (2013)
Seminário
- Estilo e som no audiovisual
Resumo
- Diante da estranheza no encadeamento entre os elementos do filme Doce Amianto (2013), a voz está sempre próxima ao espectador. O uso das fonações por Guto Parente e Uirá dos Reis é carregada de valor estético e emotivo arranjados pelo timbre, ritmo, entonação e espacialização da voz dos personagens do filme. Pretendemos explicitar as tenções que evidenciam a construção esquizofrênica de vozes que não condizem com os espaços dos demais elementos sonoros ou da tela, nem com os corpos em cena.
Resumo expandido
- A presente proposta atenta para a concepção sonora do filme cearense Doce Amianto (Guto Parente & Uirá dos Reis, 2013). Em particular, tentamos compreender as relações, tensões e liberdade entre a imagem e o som da obra. O corpus supracitado afeta o espectador para além das relações entre objetos, imagens e suas interpretações. Assim como nas proposições do antropólogo Tim Ingold (2011), o filme é constituído por diferentes camadas de experiência e não como produto mental ou espiritual a partir da construção com a luz e com o som, em concomitância.
Ao longo das transformações na experiência-cinema, Deleuze (1990, p. 293) observa que o “vaivém entre a palavra [desde as palavras escritas] e a imagem” (VIDAL apud DELEUZE, 1990) fez aflorar uma nova relação entre elas. O que podemos compreender dos desdobramentos dessas possibilidades em obras audiovisuais no cinema contemporâneo brasileiro? Em nossa visão, o filme Doce Amianto contém “condições de estranheza” da fala que tencionam a relação visual e sonora de forma esquizofrênica durante toda a duração do filme: as vozes nunca condizem com os espaços dos demais elementos sonoros ou da tela, nem com os corpos em cena; a disjunção é reinventada a cada plano e o sonoro povoa sem necessariamente preencher o visto e o não-visto visual com uma presença específica.
A disjunção é em si um ato de resistência, pois a voz vem do outro lado da imagem e está sempre próxima ao espectador, independente da profundidade de campo da imagem. O uso das fonações por Parente e dos Reis é carregada de valor estético, emotivo e político: arranjados pelo timbre, pelo ritmo, pela entonação e pela espacialização da voz dos personagens do filme, desde a captação até a projeção e apreensão destes pelo espectador.
A voz, de acordo com as convenções da linguagem cinematográfica, deve permanecer na caixa central (atrás da tela) e manter a sincronia com a boca do personagem em quadro. O som da boca de Amianto, entretanto, se desloca da tela. Com base na sociolinguística, o filósofo Gilles Deleuze distingue as “falas” entre atos de fala interativos (som in e som off relativo ou “fora de campo”) e atos de fala reflexivos (som off absoluto ou “extradiegético”). Doce Amianto, se distancia destas definições antagônicas ao corroborar e homenagear um cinema cujos atos de fala são mais misteriosos, são atos de fabulação. A relação do som com as camadas visuais se daria em movimento, de forma que a voz de Amianto forma uma unidade que existe à parte de seu corpo, concomitante no filme, eles se relacionam, mesmo sem estarem diretamente conectados. A fala de Amianto não pertence àquele espaço, não sabemos se saiu da boca dela.
Sua voz atravessa lugares, espaços e pessoas, não segue ou parte do corpo da personagem, mas circula e se propaga de onde não se sabe: de alhures. São vários os espaços paralelos e concorrentes. Os ouvidos do espectador apenas observam/auscultam estas diferenças nos mecanismos de gravação e reprodução do som explícitos no próprio tecido fílmico. A experiência não é interrompida por essa multiplicidade, mas a mixagem corrobora para que fiquemos sempre em alerta, pois não existe o conforto do som naturalista que escamoteia e direciona nossas diferentes experiências sensórias. Aqui, o som contém diferentes camadas, diferentes tons.
A fala de Amianto contém ritmo, um movimento que encadeia a falta de sequência nas ideias, com, em contrapartida, estranhas associações, curiosas recordações, que em nada se parecem com os diálogos que habitualmente preenchem as narrativas cinematográficas. Trata-se de uma conversa sonora, com desenhos da música dos arranjos sonoros que se formam na escuta independentemente dos seus conteúdos, objetos ou corpos na tela. Em tom de narrativa literária, a construção das falas de Amianto não circula e não se propaga de forma a criar interações vivas entre personagens independentes e lugares separados, porque ultrapassa personagens determinadas e permanece sem lugar.
Bibliografia
- AUDIBERT, L. “L’ombre du son”, Cinématographe, n० 48, jul, 1979, p-p 5-6.
BERTHET, F. “La conversation”, Communications, no 30, 1979, p. 150
CAESAR, R. “O berro da arara: para ‘re(con)duzir’ o objet sonore”. Apresentado no XXVII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – Campinas – 2017
CHION, Michel. La voix au cinema, Cahiers du cinéma – Editions de l’Etoile, pp. 13-14.
_____________. L’audio-vision – Son et image au cinema. Paris: Armand Colin, 1990
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. (Coleção TRANS).
___________. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
GUIMARÃES, C. A INTRODUÇÃO DO SOM DIRETO NO CINEMA DOCUMENTÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 1960. São Paulo: Dissertação defendida na Universidade de São Paulo(USP), 2008.
INGOLD, T. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Editora Vozes, 2011