Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    Jansen Hinkel Molineti Tavares (UAM)

Minicurrículo

    Jansen Hinkel Molineti Tavares atualmente é doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi (PPGCOM-UAM); é mestre em Comunicação pela mesma instituição e possui graduação em Cinema e Vídeo pela Faculdade de Artes do Paraná (FAP-UNESPAR). Atua como pesquisador de cinema, com interesse nos caminhos filosóficos e poéticos das artes audiovisuais. Participa de produções independentes desde 2007, quando ingressou na universidade.

Ficha do Trabalho

Título

    Localidade, oralidade e acaso: Gede Vizyon e o espírito da memória

Resumo

    Gede Vizyon é um documentário haitiano em curta-metragem realizado por um trio de artistas – Steevens Simeon, do Haiti, e os brasileiros, Jefferson Kielwagen e Marcos Serafim – durante a 5ª Bienal do Ghetto. No filme, uma cabra, com uma câmera acoplada, passeia pelo cemitério de Porto Príncipe. Este trabalho pretende discutir os procedimentos estéticos adotados no filme e como tais escolhas servem ao debate sobre preservação e projeção da memória de um local.

Resumo expandido

    Gede Vizyon, realizado no Haiti, é um curta-metragem onde uma cabra, com uma câmera GoPro acoplada em seu corpo, passeia pelo cemitério de Porto Príncipe. No filme, acompanhamos a trajetória da cabra ouvindo seus ruídos misturando-se à declamação de poemas e cantos religiosos.
    Os “gedes”, do título, são espíritos responsáveis pela morte e fertilidade no vodu. Para haver comunicação com os “gedes”, parte dos rituais envolve o sacrifício de um bode ou de uma cabra, o que às vezes acontece no cemitério. Os realizadores partem desse pressuposto identitário da cultura na utilização de uma cabra como “cinegrafista”. Já os poemas entoados são da voz do “oungan” (mestre vodu) Jean-Daniel, que posteriormente às gravações viu as imagens da câmera e improvisou o texto que serviu de narração ao filme. Os cantos, na voz da “manbo” (mestre vodu) Jacquelyne, são hinos tradicionais para os “gedes”. Dessa forma, imagem e som estão presentes para referenciar a cultura haitiana dentro de um local histórico.
    O historiador Marc Ferro (1976) percebeu que os filmes eram documentos históricos indesejáveis para a elite intelectual, e tal percepção fez com que se pudesse entender o audiovisual como produto analítico da história que tem na participação das minorias uma reelaboração do que se entende por memória e história, e uma relativização nos conceitos do que merece ou não ser registrado.
    Identificamos três procedimentos em Gede Vizyon, e planejamos, assim, analisar a questão da preservação da memória a partir das estratégias audiovisuais acedidas pelos realizadores.
    O primeiro procedimento é a localidade. Um cemitério, para o vodu, é um lugar vivo, onde morte e memória se encontram. A escolha desse espaço sócio-geográfico diz respeito tanto ao povo haitiano quanto ao descaso político pós-terremoto em 2010, onde o cemitério de Porto Príncipe passa a funcionar como um índice da destruição ocorrida e o abandono sofrido pela população. A inferência da memória ocorre na cultura “desde a mobilização de passados míticos para apoiar políticas chauvinistas e fundamentalistas (…) até políticas para criar esferas públicas de memória real contra o esquecimento promovidas pelos regimes pós-ditatoriais” (HUYSSEN, 2000, p. 16). No filme, o cemitério é o local de ação estética para a politização da memória.
    O segundo procedimento é a oralidade. Os cantos são registros poéticos orais da religião vodu. O som do documentário torna-se um espaço para a memória desses cantos e poemas. Sem imagens não há arte, a arte é pensar por imagens e a poesia é uma maneira particular de pensar (CHKLÓVSKI, 1976). A memória oral, ou seja, objeto imaterial da cultura, tem no cinema um campo de inscrição, outro tema para a proposta aqui construída, visto que toda língua é um cosmos, contudo não é um sistema fechado. Há uma crítica kantiana em relação às categorias do conhecimento que enxerga em outras línguas e manifestações orais uma multiplicidade que relativiza as próprias categorias estabelecidas. Esse problema ontológico e epistemológico é também um problema da memória, visto que se algo é perdido (não preservado), outras formas de pensamento tornam-se desconhecidas (FLUSSER, 2007).
    O terceiro procedimento é o acaso. Colocar a câmera no corpo de um animal problematiza as questões de autoria hegemônica em relação ao enquadramento. O que também surge do acaso é o improviso vocal do mestre vodu ao ver as imagens captadas, utilizadas na edição como banda sonora. O acaso então pode ser visto como um princípio formal de construção da memória e uma delimitação para o objeto de análise.
    Devido a desastres naturais, uma diáspora deliberada e um governo autoritário (com controle externo no centro do poder), o Haiti tem na sua memória imaterial um campo de ação político que pode ser explicitado pelas artes. Este trabalho pretende, portanto, produzir uma reflexão a partir do curta-metragem Gede Vizyon, com o intuito de compreender como se agencia a memória no conteúdo fílmico.

Bibliografia

    CHKLÓVSKI, Victor. A arte como procedimento. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (org.). Teoria da Literatura: Formalistas Russos (3ª ed.). Porto Alegre: Editora Globo, 1976, pp. 39-56.
    FERRO, Marc. Filme: uma contra-análise da sociedade? In: LE GOFF, J.; NORA, P. (Orgs.). História: novos objetos. Trad.: Terezinha Marinho. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976. p. 202-203.
    FLUSSER, Vilém. Língua e Realidade. São Paulo: Annablume, 2007.
    HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Trad: Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.