Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    Suzana Schulhan Lopes (UNIFESP)

Minicurrículo

    Socióloga e bibliotecária, fui pesquisadora da Cátedra Celso Furtado (FESPSP), grupo sobre economia política e estratificação social. e do Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual (FESPSP), onde uma de minhas produções tornou-se artigo da revista Ponto Urbe (USP). Hoje mestranda (UNIFESP), com orientação de Mauro Rovai, inspiro-me na ideia de “narrador” (Walter Benjamin) para pensar produção/descarte de subjetividades no capitalismo. Crio, para isso, uma relação entre Ciências Sociais e Cinema.

Ficha do Trabalho

Título

    “Narrador” em extinção? Uma análise de Estamira e Os Catadores e Eu

Resumo

    O sofrimento do pós-guerra silenciou os sujeitos e comprometeu uma faculdade que parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências, e o “narrador está em extinção” (diagnóstico de Walter Benjamin). Extinguir também significa descartar: o que se descarta na modernidade, portanto, é o narrar. Comparando dois filmes que se passam ao redor de descartes – “Estamira” e “Os catadores e eu” –, investiga-se a possibilidade de aparecimento deste “narrador benjaminiano” no capitalismo.

Resumo expandido

    Walter Benjamin relacionou a extinção da narrativa com o desolamento causado pela guerra, comprometendo “uma faculdade que parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências” (BENJAMIN, 1994,
    p.198). O silêncio acometia os soldados, que, enlutados, voltavam calados das trincheiras. Assim, da experiência da perda passa-se a viver a perda da experiência. O emudecimento compromete a arte da narrativa e, ainda, da
    figura do narrador, que, nas palavras do autor, está em extinção, descartado.

    O alargamento do capital na vida moderna parece só mais acirrar o diagnóstico do frankfurtiano, e os sujeitos acabam por produzir mesmo suas subjetividades sob influência de uma lógica financeira e empresarial: como nos atualizam Pierre Dardot e Christian Laval, ao passarem a limpo os lugares comuns do capitalismo interminável processo de valorização do eu. Não há, logo, espaço para história e narração, que são descartadas.

    Dois filmes que se passam ao redor de (outros) descartes, porém, parecem proteger o intercâmbio e troca de histórias, portanto proteger a figura artesanal do narrador, ainda que em meio à realidades só mais atravessadas pelo capital. São eles “Estamira”, de Marcos Prado (Brasil, 2006), e “Les glaneurs et la glaneuse”, de Agnès Varda (França, 2000). Enquanto que no primeiro temos uma vida retratada a partir dos descartes, no segundo temos os descartes retratados a partir das vidas. Em um, o descarte é coadjuvante,
    noutro, protagonista.

    Além dessas primeiras observações, os filmes representam potenciais materiais de análise para problemáticas a respeito
    1- do “lixo”, do que é socialmente considerado descarte em cada filme;
    2- de qual espaço geográfico se destinam os descartes nas diferentes obras;
    3- dos contextos e atores sociais presentes (os “sistemas relacionais” e “pontos
    de fixação”, para citar Pierre Sorlin) e, principalmente, hipótese mobilizadora da
    pesquisa,
    4- do aparecimento do narrador, uma vez que o tom artesanal e conselheiro (que serviram à conceituação de Benjamin) comparece fortemente ao longo de ambas as produções, com suas especificidades a serem analisadas e comparadas.

    O cinema e a invenção da vida moderna – como podemos reconhecer junto de Ismail Xavier – evidenciam de que maneira, no final do século XIX, se instituiu socialmente uma forma do olhar que encontrou no cinema sua
    expressão. Algo que se ampliou e se complicou no século XX, com a nitidez maior dos fenômenos de massa e, numa fase seguinte, com o horizonte de coextensividade entre real e imagem, fato e espetáculo. “É esta potencialidade singular”, nas palavras de Fernão Ramos, “que pode nos situar em uma perspectiva instigante para pensarmos a tradição da narrativa documentária em particular, e as imagens não-ficcionais de um modo geral” (RAMOS, 2001, p11).

    Dessa forma, tem-se que o cinema é uma “forma de conhecimento, permitindo melhor compreender tanto conceitos e temas que articulam a abordagem política, quanto compreender o sentido das práticas políticas que
    se desenvolvem na sociedade” (CHAIA, 2014, p-6).

    Toma-se, então, os filmes como ponto de ancoragem para extrair significados que não estão lá, dados, falando por si mesmos, mas que podem ser encontrados a partir das perguntas que o pesquisador lhes faz (ROVAI,
    2017): são procedimentos metodológicos da sociologia do cinema.

    Isto posto, sustentar os lugares da minha área de pesquisa expondo-a às ambiências da outra área que ela envolve é cumprir com a responsabilidade que a formação interdisciplinar do saber merece. Trata-se da importância em produzir conhecimento e reconhecimento acadêmico utilizando da produção cinematográfica também enquanto objeto de estudo das ciências sociais, fazendo coro ao tema do XXIII Encontro da SOCINE, afinal “Preservação e Memória” só são possíveis através da conservação, e não do descarte de narrativas.

Bibliografia

    BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Brasiliense, 2017.
    BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Brasiliense, 1994.
    CHAIA, Miguel. Cinema & política. Azougue Editorial, 2015.
    DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. Boitempo, 2017.
    GAGNEBIN, Jeanne-Marie. História e narração em Walter Benjamin. Ed.
    Unicamp, 1994.
    RAMOS, Fernão Pessoa. Estudos de Cinema. SOCINE 2000. Ed. Sulina, 2001.
    ROVAI, Mauro. Formas de manifestação do passado em filmes de Alain Resnais. Aproximações sociológicas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 33, n. 96, 2017.
    ROVAI, Mauro. Imagem e técnica como itinerários das ciências sociais: considerações sobre o cinema de Leni Riefenstahl. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24, n. 71, 2009.
    SORLIN, Pierre. Sociología del cine. Apertura para la historia de mañana. Fondo Cultura Económica, 1985.
    XAVIER, Ismail. O olhar e a cena. Cosac & Naify, 2003.