Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    Maria Leite Chiaretti (ECA / USP)

Minicurrículo

    Programadora e pesquisadora de cinema e artes visuais. É mestre em Teoria e História do Cinema pela Université Paris 8 (2012) e doutora pelo programa de pós-graduação em Meios e Processos Audiovisuais da ECA / USP (2019) onde desenvolveu, sob orientação de Ismail Xavier, pesquisa comparativa sobre a instabilidade nos cinemas de Cassavetes e Rivette. Em 2018, foi co-curadora e co-organizadora do catálogo da mostra “O cinema interior de Philippe Garrel”.

Ficha do Trabalho

Título

    Loucura e insurreição do corpo feminino em Rivette e Cassavetes

Seminário

    Corpo, gesto e atuação

Resumo

    A comunicação examina, em perspectiva comparatista, o modo pelo qual os longas L’Amour fou (Rivette, 1968) e A Woman Under the Influence (Cassavetes, 1974) figuram a experiência da loucura de suas protagonistas. Cada um a seu modo, os filmes inventam um estilo capaz de enfrentar o material dramatúrgico da instabilidade psíquica feminina. Trata-se então de discutir em ambos o nexo entre tal estilo e a revolta do corpo feminino contra o cerceamento do espaço reservado às mulheres até então.

Resumo expandido

    Topos tradicional da história do cinema, a loucura aparece em inúmeros filmes, como assunto principal, motor da narrativa ou dado dramatúrgico. Referida no título de Amour louco e tematizada em Uma mulher sob influência, sua experiência atravessa os dois filmes e é figurada nos seus momentos mais expressivos. A violência do espaço doméstico e social impingida à mulher é reforçada por uma incompreensão dos protagonistas masculinos Sébastien (JP Kalfon) em L’Amour fou e Nick (Peter Falk) em A Woman, que encontram nela o único modo de lidar com os distúrbios de suas companheiras. Apesar de os cineastas e os exegetas não discutirem abertamente o nexo entre sociedade patriarcal e loucura feminina, os filmes sugerem que os atos desajustados de Claire (Bulle Ogier) e Mabel (Gena Rowlands) respondem de alguma forma à inadequação de ambas aos papeis sociais que lhes são tacitamente reservados, e acabam atualizados pelo horizonte de expectativas amorosas de seus companheiros. A forma que Rivette e Cassavetes encontram para figurar o ímpeto controlador masculino e o desajuste psíquico feminino é colocando o corpo dos atores à prova em sequências que evocam o happening e a arte da performance.
    Realizados num momento de florescimento da segunda onda feminista, os filmes também poderiam ser lidos através do prisma da revolta do corpo feminino contra a violência do espaço doméstico. O filme paradigmático sobre esta questão da experiência feminina segue sendo Jeanne Dielman (Akerman, 1975), que retoma com radicalidade dramatúrgica e estilística um motivo já presente, em chave burlesca, no primeiro curta de Akerman (Saute ma ville, 1968). Conferindo tempo real aos rituais dos trabalhos domésticos, Akerman materializa na forma do filme o ritmo do cotidiano feminino. Os gestos precisos de Jeanne simultaneamente naturalizados pela ficção e desnaturalizados pela duração são captados por um enquadramento que reforça sua previsibilidade.
    Realizados por homens, adotando focos narrativos que alternam o ponto de vista dos maridos e o das esposas, L’Amour Fou e A Woman também retratam, a seu modo, o espaço claustrofóbico e restritivo das mulheres. Sem afirmar que os cineastas estivessem imbuídos de uma consciência feminista ao realizarem os filmes, julgamos porém inegável que L’Amour Fou e A Woman atentam para questões que preocupavam os movimentos feministas da época. Apesar da ausência de posições claramente ideológicas nos conflitos de gênero, podemos enxergar uma tomada de posição através do modo pelo qual os filmes se deixam atravessar pela potência da interpretação das mulheres.
    Claire e Mabel são personagens habitadas por um sentido de ambivalência que recebe tratamento formal à altura: as duas dependem das suas relações e, ao mesmo tempo, querem se libertar delas. Assim como ocorre no filme de Akerman, a progressão rigorosa e cronológica dos eventos nos nossos dois filmes é determinante para acompanharmos o rompimento da ordem, e os gestos disruptivos das personagens são uma resposta à repressão masculina. Ambos os filmes figuram a rebelião do corpo feminino contra o espaço doméstico e a violência que ele lhe impinge. Em sequências que mimetizam os gestos transgressores do happening, o potencial plástico dos corpos das atrizes desestabiliza a ficção, saturando a representação com uma presença absoluta do corpo feminino. A loucura a que são levadas Claire e Mabel por suas relações conjugais é manifestada em seus corpos de modo distintos. No entanto, a progressão do distúrbio psíquico se dá, nos dois casos, através de uma infantilização crescente das personagens. Claire tenta roubar um cão na casa de um estranho, compra uma série de bugigangas numa saída de casa, e passa cada vez mais tempo reclusa dentro de seu apartamento. Mabel é excessivamente carinhosa com os amigos de Nick, brinca com as crianças como se fosse uma delas, e durante os surtos, dança em cima do sofá, num gesto que lembra uma certa transgressão infantil.

Bibliografia

    AUMONT, J. Le cinéma et la mise en scène. 2ª ed., Paris: Armand Collin, 2010.
    AUSLANDER, P. From Acting to Performance: essays in modernism and postmodernism. Londres: Routledge, 1997.
    BRENEZ, N. “Die for Mr. Jensen”, L’avant- scène cinéma, no 411, abr. 1992.
    CHIARETTI, M. O cinema instável de Jacques Rivette e John Cassavetes: happening, improvisação, teatralidade. (Tese de Doutourado). São Paulo: ECA-USP, 2019.
    MOUELLIC, G. Improviser le cinéma. Crisnée: Éditions Yellow Now, 2011.
    RUBY RICH, B. “Designing Desire: Chantal Akerman” [1983]. In Chick Flicks : Theories and Memories of the Feminist film Movement. Durham & London: Duke Univ. Press, 1998, p.169-173.
    SCHECHNER, R. Performance theory. Nova York: Routledge, 1988.
    SONTAG, S. “Happenings: uma arte de justaposição radical” [1962]. In Contra a interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987, pp. 305-317.