Ficha do Proponente
Proponente
- Camilo Soares (UFPE)
Minicurrículo
- Fotógrafo e professor de Cinema e Audiovisual da UFPE. Doutor pela université Paris 1 Panthéon-Sorbonne.
Ficha do Trabalho
Título
- O não-lugar reconquistado nos espaços mínimos de Jia Zhangke
Resumo
- O acelerado desenvolvimento econômico chinês nas últimas décadas provocaram enormes transformações na paisagem rural e urbana. A obra de Jia Zhangke busca constantemente testemunhar o atual impacto paisagístico sobre as pessoas, sobretudo as que foram jogadas à margem desse processo de modernização. No entanto, seus filmes não são apenas registros dessas mudanças rápidas e dramáticas. Há neles uma sutil, mas sistemática, reapropriação desses espaços por parte de seus atores sociais.
Resumo expandido
- O acelerado desenvolvimento econômico chinês nas últimas décadas provocaram enormes transformações na paisagem rural e urbana. Como resultado, enormes áreas que antes tinham um valor histórico ou afetivo para as populações são transformados em vastos não-lugares, caracterizados, segundo Marc Augé, pela falta de identidade que esses representam para a população que os utiliza. Tais terrenos surgem como terra arrasada de um projeto de progresso, inóspitos ao ser humano, como demostra a série de fotografias Paisagens Provisórias de Ai Weiwei, cujas fotos expressam uma pulverização histórica e cultural, além de uma obstrução física, mas também estética e subjetiva desses enormes canteiros de obras transformados em lugares frios e assépticos. As imagens e o título remetem à expressão paisagista chinesa, como base de um olhar cosmológico da cultura e filosofia oriental, cuja relação está ameaçada diante de uma lógica puramente funcional e mercantilista de vivência do mundo. O cinema não poderia ficar imune a tais contradições.
A obra de Jia Zhangke busca constantemente testemunhar o atual impacto paisagístico sobre as pessoas, sobretudo as que foram jogadas à margem desse processo de modernização. Os exemplos são numerosos, como o Conjunto Habitacional de uma usina de armas que deu lugar a prédios de luxo (em 24 City, 2008); ou a descaracterização das construções históricas de Fenyang, sua terra natal, diante de grande cidade que se tornou (As Montanhas se Separam, 2015); sem falar em uma região de 14 cidades de mais de 2 mil anos de história, destruída para ser inundada pela barragem das Três Gargantas (Em Busca da Vida, 2006).
No entanto, seus filmes não são apenas registros dessas mudanças rápidas e dramáticas. Há neles uma sutil, mas sistemática, reapropriação desses espaços por parte de seus atores sociais. Numa cerimônia funerária, por exemplo, (As montanhas se Separam) nas margens de uma autoestrada poeirenta não é, por exemplo um mero desprestígio de uma tradição, como poderíamos pensar à primeira vista, mas uma reafirmação desse não-lugar como um espaço vivenciado por uma cultura. Tal ocupação atua de modo objetivo e subjetivo para transformação desses lugares impessoais em improváveis lugares de uso afetivo, mesmo que frágeis e incertos. Tais espaços mínimos são pequenas zonas de resistência dentro da representação territorial de um processo devastador e desumano.
Essa influência mutua entre espaço e vivência é uma forma política atual, como bem pontua David Harvey, em sua visão do direito à cidade, para a qual esta é transformada na medida em que nós nos transformamos. No entanto, tais representações de Jia possibilitam ao olhar uma penetração nas profundezas da imagem, onde se manifesta uma sobrevivência formal e energética warburgianas de memórias ainda resistentes. Tal processo é costurado inerentemente pela subjetividade de atores e do observador, criando um elo necessariamente estético para evidenciar essa vivência dialética que constrói a possibilidade que esse espaço, agora também espaço imaterial, seja habitado por discursos não hegemônicos.
Bibliografia
- AI Weiwei, Entrelacs: Dossier de Presse. Paris, Jeu de Paume, 2012.
ARANTES, Otília Beatriz Fiori, Chai-na, São Paulo, ed. da Universidade de São Paulo, 2011.
AUGÉ Marc, Non-Lieu, Paris, Ed. du Seuil, 1992.
DIDI-HUBERMAN Georges, Images Malgré tout, Paris, Les Éditions de Minuit, 2008.
DIDI-HUBERMAN Georges. L’Image survivante, Editions de Minuit, Paris, 2002.
HARVEY David. “O Direito à Cidade”, Revista Piauí, ed. 82, jul 2013.
JIA Zhang-ke, Dits et écris d’un cinéaste chinois, Capprici, Paris, 2012
RANCIÈRE Jacques, La fable cinématographique. Éditions du Seuil, Lonrai, 2001.
RANCIÈRE Jacques, Le spectateur émancipé, La fabrique editions, Paris, 2008.