Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    Roberta Veiga (UFMG)

Minicurrículo

    Doutora em Comunicação pela UFMG e professora do Programa de Pós-Gradução na mesma instituição. Editora da revista Devires: Cinema e Humanidades, integrante do comitê científico do forumdoc.bh (Festival de Cinema Etnográfico de Belo Horizonte), coordenadora do grupo de pesquisa Poéticas femininas, políticas feministas: a mulher no cinema (UFMG). Traduziu o livro Nothing Happens: Chantal Akerman’s Hyperrealist Everyday, de Ivone Margulies.

Ficha do Trabalho

Título

    Formas de insubordinação cinematográfica ao mito do amor materno

Seminário

    Mulheres no cinema e audiovisual

Resumo

    Na tentativa de interpelar a equação ser mulher é ser mãe – base da maternidade compulsória para atender ao patriarcalismo -, compomos uma constelação de filmes em dois eixos de análise: a)maternidade vivida no corpo: filmes de 50-60, que lidam com a gravidez e o aborto, No limiar da vida (Ingmar Bergman) e A mulher que pecou (Bryan Forbes); b)maternidade em processo: filmes de 2018, que tocam à impossibilidade da relação mãe-filha, Julia e a Raposa (Inês Barrionuevo) e Meu anjo (Vanessa Filho).

Resumo expandido

    O desejo de ser mãe não vem para todas, e a maternidade não vem da mesma forma para cada uma. Essa parece uma formulação simples, mas não é, pois toca ali onde o ser mulher é definido ideologicamente, por interesses machistas. Na verdade, essa frase é, na perspectiva da qual parte essa apresentação, um grito de resistência contra a ordem patriarcal que toma a maternidade como instintiva e compulsória.
    Repetimos a máxima de Simone de Beauvoir, “não se nasce mulher tonar-se mulher”, mas do que exatamente estamos falando. Nos anos 40, Beauvoir foi uma das primeiras mulheres a dizer literalmente que apesar de nascermos com a capacidade de procriar tal condição não pode nos definir. “Que uma criança seja o fim supremo da mulher, isto é uma afirmação que tem apenas o valor de um slogan publicitário”. Em seus escritos, ela afirmou o aborto como fato da vida e da liberdade feminina, sublinhando justamente que a gravidez é uma escolha da mulher. Beauvoir escrevia a contrapelo de uma ordem social fundada no determinismo biológico para a qual às mulheres cabia um único destino: o de mãe. Por isso, para ela, tornar-se uma mulher era também libertar-se da idealização da maternidade, da equiparação convenientemente machista de que ser mulher é ser mãe. Era preciso mostrar, e ainda é, o quanto essa idealização sustenta a sociedade patriarcal e, a reboque, o capitalismo: a segurança de que as mulheres seguirão servindo à procriação e, portanto, “aos homens”, produzindo via “relação heterossexual” mão de obra futura, e, ainda, cuidando dos filhos e do lar para que a dinâmica econômica e social se mantenha.
    Em função de toda uma herança católica de culpabilização da mulher, é delicado, mas fundamental, o entendimento de que maternidade é uma escolha entre outras, e que ela não pode ser acatada como forma de disciplinarização do corpo feminino, que deve subsistir para fins da reprodução da espécie. É justamente aí onde a maternidade precisa ser desnaturalizada e entendida como uma trama complexa – que, para além da condição biológica, implica questões históricas, morais, institucionais -, que o cinema pode ser chamado. O cinema pode testemunhar a diversidade das experiências do ser mãe, assim como criar narrativas onde essas nem sempre correspondem aos desejos mais profundos de muitas mulheres, basta que os filmes façam durar na tela os enfrentamentos, as opressões e as disputas que constituem essas múltiplas formas femininas de vida. Através do cinema, é possível às mulheres um tempo de ver juntas outras mulheres e, com elas, partilhar outros tempos, só assim a maternidade pode surgir em sua dimensão estriada, insubordinada e conflituosa.
    Em nossa pesquisa traçamos um extenso inventário de filmes a partir do qual percebe-se, estética e politicamente, que a maternidade é plural, relacional, contingencial; que pode funcionar ou não; e que é vivida diferentemente por cada mulher. Para a discussão no seminário temático, escolhemos uma pequena constelação de quatro filmes de nacionalidades diferentes, articulados em duplas da mesma época, a partir de dois eixos comparativos: a) a maternidade vivida no corpo e b) a maternidade em processo. No eixo “a”, os filmes são antigos, datam do fins de 50 e início dos 60, são dirigidos por homens, lidam com a gravidez e o aborto: No limiar da vida, de Ingmar Bergman (Swe, 1958) e A mulher que pecou, de Bryan Forbes (Ing, 1962). Neles a maternidade é de fato um pathos, em que o corpo da mulher durante a gravidez é atravessado por fortes tensões que a levam a questionar sua escolha, e a retirar dessa experiência algo para além do ser mãe. No eixo “b”, são filmes contemporâneos, dirigidos por mulheres, nos quais o estiramento da relação entre mãe e filha (ainda criança) vai da dificuldade à impossibilidade de maternar. Daí a interpelação radical do lugar da mulher-mãe. São eles: Julia e a Raposa, de Inês Maria Barrionuevo (Arg, 2018) e Meu anjo, de Vanessa Filho (Fra, 2018).

Bibliografia

    BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. RJ: Nova Fronteira, 1985.
    BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: a experiência vivida. SP: Difusão Européia do Livro, 1960.
    BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. RJ: Civilização Brasileira, 2008.
    DELPHY, Christine. Libération des femmes ou droit corporatiste des mères? Nouvelles questions féministes, Particularisme et universalisme, Paris, n. 16/17/18,1991.
    DOANE, Mary Ann. Woman’s Stake: filming the female body. KAPLAN, Ann. Feminism & Film: Oxford University Press, 2000.
    SCAVONE, Lucila. Nosso corpo nos pertence? Discursos feministas do corpo. Revista Gênero, Niterói, v.10, n.2, 2010.
    SWAIN, T. N. A Invenção do Corpo Feminino ou A Hora e Vez do Nomadismo Identitário? Feminismos: Teorias e Perspectivas. Revista PPG-História, UnB, vol. 8, 2000.
    WITTIG, Monique. The Straight Mind and other Essays, Boston: Beacon, 1992.