Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    Daniela Moreira de Faria de Oliveira Rosa (UFRJ)

Minicurrículo

    Daniela M. F. O. Rosa é formada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com habilitação em Radialismo. Realizou programa de intercâmbio acadêmico na graduação de História da Arte na Universidad Autónoma de Madrid (UAM) em 2014. Atualmente é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desenvolve pesquisa acerca do feminino, cinema e outras poéticas.

Ficha do Trabalho

Título

    As cartas em Chantal Akerman: inscrições do cotidiano e singularidade

Seminário

    Interseções Cinema e Arte

Resumo

    O gesto de escrever cartas é recorrente na produção de Chantal Akerman. Mesmo quando não está em cena, a carta parece estar no próprio dispositivo de seus filmes. Seu rígido sistema formal descreve um cotidiano em primeira pessoa e, ao mesmo tempo, subverte uma estética realista a partir do próprio olhar aguçado na materialidade. Neste trabalho, procuro apresentar a carta em seus filmes como gesto e dispositivo que comunica cotidiano e singularidade.

Resumo expandido

    O gesto de escrever cartas é recorrente na produção de Chantal Akerman. Em Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles (1975), Jeanne, a dona de casa prostituta que assassina, lê e escreve cartas a seus parentes num ritual frequente após o jantar, do qual insiste que seu filho, não muito animado, participe. News from home (1977) é um filme em que ouvimos Chantal ler as cartas que recebeu da mãe enquanto morava em Nova York, ao mesmo tempo em que vemos as ruas e movimento do dia-a-dia na cidade americana. As cartas também são atualizadas em conversas ao telefone, como as que a personagem da mãe realiza quase diariamente em Une famille à Bruxelles (2017), livro escrito por Chantal. E mesmo quando não está em cena, a carta parece estar no próprio dispositivo de seus filmes. Eles são também descrições de um cotidiano em primeira pessoa, como as cartas que escrevia Jeanne Dielman.
    Sua produção é autobiográfia. “Não tentei encontrar um meio-termo entre eu e os outros. Acredito que quanto mais particular eu sou, mais eu alcanço o geral” (AKERMAN, 1982 in MARGULIES, 2016: 51). Mas, antes de representar o passado traumático de sua família que deixou a Polônia fugindo da Alemanha nazista, ela retoma o ambiente doméstico em seus filmes. Os gestos em Chantal são gestos menores, cotidianos, sem importância. Limpar, comer, escrever cartas. Quando Walter Benjamin descreve o gesto nas peças de Brecht ele fala em um certo intervalo, uma ruptura na narrativa da qual emerge o singular (BENJAMIN, 1985). Em Chantal, esses gestos do cotidiano, quando repetidos e observados durante o tempo suficiente, deixam ver sua estranheza, tornam-se únicos. Para Gilles Deleuze, a repetição é sempre a repetição de um único, uma vez que numa lógica da generalização os termos podem ser substituídos um pelo outro como iguais (DELEUZE, 2018).
    Seu modo de narrar descritivo se dá também pela câmera. São planos frontais, abertos, fixos, com a exceção de alguns travellings. Quando provocada por Godard sobre o porquê de utilizar termos da linguística quando se referia a seu cinema, Chantal responde que “há imagens já inscritas” e que é “sob elas” que trabalha, “sob a imagem inscrita e aquela que gostaria de escrever” ((AKERMAN, 1980 in MARGULIES, 2016: 14). Numa recusa pela representação e generalização, Chantal opera um dispositivo que descreve os corpos em uma relação com o tempo que, para ela, é o que se chama cinema.
    Ivone Margulies descreve um “excedente de materialidade” que decorre do confronto com a imagem durante o tempo suficiente para que esta escape a sua indexabilidade para produzir um “efeito de real” (MARGULIES, 2016: 83), ou seja, simulacros. A descrição cotidiana de Chantal então se desvencilha de uma representação realista no próprio olhar aguçado à materialidade. Segundo Gilles Deleuze, o simulacro se difere do modelo numa relação de natureza. Ao passo que o modelo, em sua identidade perfeita, corresponde a similitude exemplar da Ideia, o simulacro é a imagem sem semelhança, o modelo do Outro (DELEUZE, 2015). Segundo o autor, “o simulacro não é uma cópia degradada, ele encerra uma potência positiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a reprodução” (DELEUZE, 2015: 140).
    Ao filmar o cotidiano, em poucos e longuíssimos planos, com poucas variações de movimento e diálogos reduzidos a falas descritivas, Chantal nos conduz a deslocamentos no que diz respeito a conceitos fundantes de uma epistemologia Ocidental – a verdade, o sujeito, a representação. Na duração estendida, ela descreve as ações de um tempo ordinário, menor, o mais literal possível. Nesse cotidiano que dura e se repete há um algo a mais que se produz, um intenso que faz vibrar os corpos. Ordem e desordem, viagens e quartos fechados, passado e presente, o eu e o outro. Chantal percorre esses lugares em sua zona de indiscernibilidade, buscando aquelas imagens já inscritas em si. Escrevendo-nos outras.

Bibliografia

    MARGULIES, Ivone. Nada Acontece: o cotidiano hiper-realista de Chantal Akerman. 1º. ed. Durhan e Londres: Duke University Press, 1996
    DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. 1º. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2018.
    DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. 5º. ed. São Paulo: Perspectiva, 2015.
    DELEUZE, Gilles. Controle e Devir. In: Conversações. 1º. ed. São Paulo: Editora 34, 1992. p. 209-218.
    DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kakfa: por uma literatura menor. 1º. ed. São Paulo: Autêntica Editora, 2014.
    DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs Vol. IV: Capitalismo e Esquizofrenia. 2º. ed. São Paulo: Editora 34, 2012.
    FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
    BRENEZ, Nicole. The Pajama Interview. 2011. Disponível em: http://www.lolajournal.com/2/pajama.html. Acesso em 2019.
    BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
    AKERMAN, Chantal. Uma família em Bruxelas. 1º. ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2017.