Ficha do Proponente
Proponente
- Vitor Zan (Paris 3)
Minicurrículo
- Graduado em cinema pela Universidade Federal de Santa Catarina, concluiu o mestrado e o doutorado em estudos cinematográficos e audiovisuais na Universidade Paris 3. Atua temporariamente como professor na Universidade Paris 7
Ficha do Trabalho
Título
- A experiência do cinema como forma de habitação
Mesa
- Experiências cinematográficas do morar
Resumo
- Ao contrário do gesto recorrente de associar a experiência do cinema àquela da viagem, esta comunicação visa a pensá-la sob o prisma da estadia ou mais particularmente da habitação. Trata-se de estabelecer balizas conceituais para este exercício, notadamente a partir das noções de ecúmena, que se refere a lugares habitáveis ou habitados, e de eremos, que designa a terra inabitada ou inabitável. A que corresponderia um cinema da ecúmena ou do eremos ?
Resumo expandido
- Se ao longo da história a experiência cinematográfica foi repetidamente comparada àquela da viagem, abrindo novos horizontes aos espectadores, tal deslocamento tende a implicar também uma forma de estadia ou de habitação. Pois, no mais das vezes, mesmo quando ambientados em rincões longínquos, os filmes oferecem aos espectadores a possibilidade de habituar-se a um determinado contexto, de tecer relações mais ou menos duradouras com lugares e personagens, remetendo a uma das definições do verbo habitar: ocupar habitualmente um local. Com efeito, boa parte da experiência cinematográfica é urdida pela dicotomia entre deslocamento e permanência, entre transporte e estadia, entre viagem e habitação.
A fim de discernir os contornos do espectro do morar no cinema, podemos distinguir duas macrotendências cinematográficas acerca da espacialidade das obras. Uma concerne aos filmes que põem em cena aquilo que na Grécia antiga se entendia pela ecúmena, cuja etimologia remete à casa (oikos) e o significado designa espaços habitáveis. A outra está mais próxima do que se chamava de eremos, cujo sentido, particularmente atrelado ao deserto, designa espaços inabitáveis ou inabitados.
Se o cinemató-grafo se destina a grafar o movimento de quaisquer elementos visíveis, em sua forma dominante ele se atém particularmente à figura humana, situando-a em “lugares”, que são porções de espaço “antropizadas”, mais ou menos reconhecíveis, que podem ser nomeadas e associadas a práticas humanas. Apresentando-se geralmente como uma antropo-grafia e uma sito-grafia, o cinema faz com que um dos gestos mais elementares do humano com relação ao espaço, o de habitar, se torne crucial em sua dramaturgia (cf. ALBERA). Por isso, o cinema da ecúmena é amplamente majoritário.
Há, no entanto, sobretudo no cinema experimental, filmes que apresentam espacialidades inomináveis, abstratas, em que o expectador dificilmente projetaria uma estadia. Já no primeiro cinema, Noel Burch enxerga no binarismo entre os Lumière e Méliès um cinema da profundidade, “habitável”, mais aberto ao mundo e à profundidade de campo, e um cinema da superfície, com fundo composto por telas planas pintadas, restrito ao espaço exíguo do palco. Esse cinema mais bidimensional se torna particularmente “inabitável” quando certos filmes de vanguarda passam a afirmar o aspecto plano da imagem com maior vigor, destacando sua plasticidade, sem qualquer relação de analogia com lugares reconhecíveis ou mesmo com a figura humana.
Além desta filmografia da superfície, a alçada do eremos pode incluir ainda as obras apegadas ao motivo do deserto ou da ruína, ou mesmo a existência de personagens que não logram se estabelecer ou morar. Eremitas, “habitantes” do eremos, do inabitável: nômades, forasteiros. Nesse sentido, dois gêneros cinematográficos talvez possam ser atrelados a essa tendência, o road movie, com suas travessias, e o western, cujo pano de fundo é o processo dito civilizatório de uma terra inóspita, desértica.
No caso do cinema brasileiro recente, que reagrupa as três comunicações que compõem a mesa temática, a premência do morar é reforçada pelo interesse de diversos cineastas pelas formas concretas das construções residenciais (mansões, arranha-céus, quartos de empregada, casebres), ou mesmo pela atenção conferida à experiência de habitação dos personagens, restituída sobretudo por poéticas do quotidiano. É notável também a especificidade compartilhada por uma série de realizadores que vislumbram o morar como um ponto de convergência entre invenção estética e engajamento social. Os lares, ruas e bairros habitados pelos personagens não são encenados apenas como lugares que isolariam a vida íntima do contexto mais amplo em que ela se dá, mas como territórios atravessados por relações de poder oriundas do corpo social. Tal cinematografia parece ressaltar a relação histórica entre cidade e cidadania, sugerindo também que a política é inerente à “polis”, termo grego que designa a cidade.
Bibliografia
- AGEL, Henri, L’Espace cinématographique, Jean-Pierre Delarge, Paris, 1978.
ALBERA, François, “Habiter un plan au cinéma”, in Sens-Dessous, n. 17, 2016.
AUMONT, Jacques, L’Image, Armand Colin, Paris, 2011.
BERQUE, Augustin, Écoumène : introduction à l’étude des milieux humains, Belin, 1987.
BORDWELL, David ; THOMPSON, Kristin, « Space and Narrative in the Films of Ozu », in Screen, n. 17, v. 2, 1976.
BURCH, Noël, Le Lucarne de L’Infini, Nathan, Paris, 1991.
NINEY, François (dir.), Visions urbaines, Éditions du Centre Pompidou, Paris, 1994.