Ficha do Proponente
Proponente
- Maria Castanho Caú (UFRJ)
Minicurrículo
- Maria Caú é formada em Cinema pela UFF e doutora em Literatura Comparada pela UFRJ, com pesquisa centrada nas inter-relações entre o cinema e a literatura. É autora do livro “Olhar o mar: Woody Allen e Philip Roth — a exigência da morte” (Editora Verve, 2015), faz parte do coletivo de mulheres críticas de cinema Elviras e colabora com o site Críticos.
Ficha do Trabalho
Título
- O narrador acousmêtre em Woody Allen
Mesa
- Narração em voz-over como recurso criativo do roteiro cinematográfico
Resumo
- Em A voz no cinema, Michel Chion introduz o conceito de acousmêtre, e define en passant o narrador acousmêtre como “aquele que não se mostra, mas que não tem um envolvimento pessoal com a imagem”. Assim, pretende-se pensar esse narrador extradiegético (ou autoral, na teoria de Stanzel) no cinema de Woody Allen (Vicky Cristina Barcelona, Você vai conhecer o homem dos seus sonhos e Café Society), analisando a sofisticação através da qual ele estabelece uma fina conexão com o ambiente literário.
Resumo expandido
- Em três de seus filmes, Woody Allen utiliza a narração extradiegética em voz-over, o famoso narrador em terceira pessoa, como alicerce estrutural do roteiro. São eles: Vicky Cristina Barcelona (2008), Você vai conhecer o homem dos seus sonhos (2010) e Café Society (2016), este último narrado pelo próprio realizador. Esse modelo de narração se liga ao conceito de acousmêtre, ou ser acusmático, proposto por Chion para se referir à voz que se faz presente no espaço do cinema sem revelar sua origem, ou seja, sem que possamos encaixá-la em um determinado corpo. Essa voz flutuante, não circunscrita às restrições próprias de um corpo, tem como atributos potenciais onisciência e onipotência, que se desmantelam apenas no caso da incorporação de sua fonte. Chion dedica diversas páginas à narração em primeira pessoa, cujas principais manifestações ele enquadra na esfera do que chama de voix-je (em inglês, I-voice, que traduzimos livremente por voz-eu), mas não se detém nos exemplos de narração em terceira pessoa, comparativamente mais raros no cinema. No entanto, é justamente a esse recurso narrativo que o teórico parece estar se referindo quando menciona a categoria de narrador acousmêtre, um subdivisão do seu conceito da qual ele fala muito brevemente. Esse narrador, cuja identidade não é revelada, se encontra em um ponto espacial indeterminável, a partir do qual pode exercitar uma visão privilegiada, com acesso irrestrito aos acontecimentos, uma espécie de poder panóptico.
Cabe esclarecer que, quando falamos de narração em primeira ou terceira pessoas no cinema estamos nos referindo somente à figura do narrador, à expressão oral de um sujeito cuja voz organiza e impulsiona certas narrativas, estrutura que, obviamente, passa longe de ser um imperativo. Ou seja, não fazemos alusão aqui à narração enquanto estrutura fílmica maior, que compila e encadeia uma série de elementos sonoros e visuais cuja sucessão deliberada constrói uma obra, que pode se dedicar a contar uma história ou a proporcionar um mergulho sensorial, plástico ou de cunho experimental. Stanzel problematiza os consagrados termos, uma vez que o que distingue o narrador extradiegético não é a utilização que esse faz da terceira pessoa (pois essa figura por vezes também diz “eu”), mas o fato de que ele não habita o mesmo plano existencial que os personagens. Poderíamos então nos referir às categorias de narrador intra e extradiegético, ou, para tomar mais a fundo os termos propostos por Stanzel, definir o narrador acousmêtre cinematográfico como um narrador autoral, ou seja, aquele que não está encarnado no mesmo universo que os personagens que apresenta e conta uma história movido por uma motivação estética não diretamente relacionada com uma experiência pessoal, ou seja, partindo de uma perspectiva externa em relação aos acontecimentos.
Se Stanzel aponta que o narrador autoral literário pode se esconder detrás de seus personagens, de forma que o leitor praticamente se esqueça de sua presença, é fácil notar que o efeito causado por esse modelo no cinema é diametralmente oposto. A presença do narrador autoral (ou acousmêtre, e que fique claro que estamos aqui aproximando categorias de diferentes autores) é sentida pelo espectador como uma espécie de abrupta invasão da literatura no espaço fílmico. O caráter relativamente raro dessas aparições é um dos fatores que contribuem para a impressão, uma vez que é facilmente observável que a absoluta maioria dos narradores da sétima arte é personagem da história que conta — frequentemente, protagonista das aventuras que compartilha conosco.
Isso posto, nos cabe pensar o diálogo com o universo literário proposto por Woody Allen nos três filmes em questão, analisando para isso as características do narrador autoral de cada uma das obras citadas, sua ligação com a literatura e sua relação com o cinema de diretores como Truffaut e Bergman.
Bibliografia
- BUCHANAN, Judith (org.). The Writer on Film: Screening Literary Authorship. London: Palgrave Macmillan, 2013.
CHION, Michel. The Voice in Cinema. New York: Columbia University Press, 1999.
FRIEDMAN, Norman. “O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico”. Trad. Fábio Fonseca de Melo. In: Revista USP. São Paulo, nº 53, março/maio de 2002, pp. 166-182.
FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Narrativas migrantes: literatura, roteiro e cinema. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio/ 7Letras, 2010.
GAUDREAULT, André; JOST, François. A narrativa cinematográfica. Brasília: Editora UnB, 2009.
STAM, Robert & RAENGO, Alessandra (orgs.). Literature and Film. New York: Blackwell Publishing, 2005.
STANZEL, F. K. A Theory of Narrative. Translated by Charlotte Goedsche. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.