Ficha do Proponente
Proponente
- Márcio Henrique Melo de Andrade (UERJ)
Minicurrículo
- Doutorando em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGCOM/UERJ) e Mestre em Educação Tecnológica (PPGEDUMATEC/UFPE) e Graduado em Radialismo e TV (UFPE). Autor do livro Autobiografias do Outro – Camadas de Selfies em Documentários Pernambucanos (2015), editado pela Combo Multimídia e incentivado pelo Funcultura, e coordenador da produtora Combo Multimídia, que realiza projetos culturais de formação, pesquisa e produção relacionados a cinema, imagem, tecnologia e narrativa
Ficha do Trabalho
Título
- Imagens da (e para) morte – Rithy Panh, arquivos e vestígios da falta
Resumo
- Este artigo analisa o documentário autobiográfico A imagem que falta (2013, Rithy Panh), para compreender como os arquivos da ditadura comunista no Camboja podem ser pensados como gestos de violências institucionalizadas pelo regime. Autores como Rancière (2012), Didi-Huberman (2012) e Sánchez-Biosca (2017) nos ajudam a refletir a retomada dessas imagens pelo cineasta como um exercício que pensa histórica e esteticamente os regimes que cercam as imagens documentais pelo prisma do documentário.
Resumo expandido
- Em ‘A imagem que falta’ (2014), o cineasta cambojano Rithy Panh relata suas memórias sobre os eventos que compuseram a instauração da ditadura comunista perpetrada pelo Khmer Vermelho no Camboja entre os anos de 1975 e 1979. Nesse exercício de constituição de si, ele retoma imagens de arquivo oficiais desse período, idealizadas para construir a imagem do líder Pol Pot como um sujeito estratégico e culto e dos ideais de ordem e progresso que interessavam aos principais nomes do regime. Nesse sentido, o uso sistemático de imagens para propagar uma projeção de projetos, propostas e atos do regime surge como uma ferramenta de poder poderosa. Para isso, uma das operações necessárias para a concepção dessa sociedade utópica consistia no apagamento das imagens de Phnom Penh – das memórias, dos arquivos, das identidades, dos sujeitos etc. – para a implementação de outras projeções do que seria a vida na Kampuchea Democrática. Os ideais de harmonia e coletividade utópicas atravessam os registros documentais que mostram Pol Pot realizando eventos junto a seus companheiros de luta Nuon Chea, Ieng Sary, Khieu Samphan e Son Sem, filmados por soldados.
Ao analisar ‘A imagem que falta’, compreendemos as motivações para que a inscrição de subjetividade compõe-se como uma escavação dos vestígios de desejo que parecem ir ao encontro justamente desse processo de apagamento da individualidade. A morte se configurou como a principal condição para que muitas dessas imagens existissem, visto que nenhum sujeito, atrás ou diante de suas câmeras, “sobreviveu ao que as imagens testemunham. São, portanto elas, as imagens, o que nos resta: são elas as sobreviventes” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 67. Grifo no Original). Na sua jornada de ‘destruir para reeducar’, o Khmer Vermelho silencia as vozes dissonantes nos campos e nas prisões, possibilitando somente os registros que reverberavam seus pressupostos, como afirma Panh em certo momento do filme: ‘Eu sei que o Khmer Vermelho tirou fotos das execuções. Por quê? Será que eles precisavam de provas, tinham um dossiê a ser concluído? Qual homem que tirou fotos deste evento gostaria que esta imagem não estivesse faltando? Estou procurando esta imagem. Se eu finalmente a encontrasse, não poderia exibi-la, claro’. O mesmo regime que produzia as imagens de abundância na produção de arroz como forma de reverberar seus ideais de harmonia e coletividade concebia fotos dos sujeitos executados por infringir suas regras.
Partindo da compreensão que as construções imagéticas perpetradas por quaisquer sujeitos revelam movimentações particulares a cada linguagem, parece impossível segregar “as operações e os produtos da arte das formas de circulação da imageria social e comercial, e das operações de interpretação dessa imageria” (RANCIÈRE, 2012, p. 34). A própria existência desses vestígios aponta para uma engrenagem que legitima um procedimento de fotografar um sujeito não somente ANTES de morrer, mas PORQUE vai morrer e PARA morrer. Ao se constituírem a partir desse gesto, as imagens realizadas pelo Khmer Vermelho, mais do que um registro imagético, compõem-se como um ato performativo que, “ao invés de descrever um inimigo, ele o cria confirmando os parâmetros de sua determinação; em vez de abrir um registro de detido, ele o condena à morte no mesmo momento em que sua imagem é tirada dele” (SÁNCHEZ-BIOSCA, 2017, p. 206). Em sua busca entre as imagens de arquivo oficiais da Kampuchea, Panh certamente encontrou milhares de documentos, mas nenhum deles completou a imagem que ele tinha em suas memórias. Retomar as violências e apagamentos nesses vestígios nos permite pensar seu filme como um exercício que constitui sua própria forma de pensar histórica e esteticamente os regimes que cercam esses arquivos. Carregando as verdades que lhes são possíveis, essas imagens são atualizadas no documentário como forma de compor os registros de um período que se abre para a elaboração de uma nova memória para a Kampuchea Democrática.
Bibliografia
- BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Lisboa: KKYM, 2012.
FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp, 2009.
NICHOLS, Bill. Introduction to documentary. Bloomington/Indianapolis: Indiana University Press, 2001.
PANH, Rithy. Sou um agrimensor de memórias. In: MAIA, Carla; FLORES, Luís Felipe (orgs.). O cinema de Rithy Panh. São Paulo; Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil; Ministério da Cultura, 2013a, p. 11-17
RANCIERE, Jacques. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
SÁNCHEZ-BIOSCA, Vicente. Miradas criminales, ojos de victima: imágenes de la aflición em Camboya. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Prometeo Libros, 2017. 240p.
TEIXEIRA, Francisco. Documentário Moderno. In: MASCARELLO, Fernando (org.) História do Cinema Mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006.