Ficha do Proponente
Proponente
- Maria Noemi de Araujo (CLIPP (EBP))
Minicurrículo
- Psicanalista, Pesquisadora e Professora na CLIPP-EBP (Clínica Lacaniana de Pesquisas em
Psicanálise, da qual é sócia-fundadora); na ENFF-MST (Escola Nacional Florestan
Fernandes, Movimento Sem-Terra) e na Clínica do Testemunho. Doutora em Metodologia
de Pesquisa (UFSCar), D.E.A. em Educação (Paris V), Mestre em Filosofia da Educação
(PUC-SP). Publica artigos e apresenta trabalhos sobre Cinema e TV na área psicanalítica,
no Café Filosófico da CPLF e em 6 Encontros SOCINE. Foi membro do CAM.
Ficha do Trabalho
Título
- Quinta essência: cineclubismo e práxis cinematográfica
Resumo
- A partir da análise de Quinta essência (1981) discutiremos de que modo o cineclubismo propôs uma interface entre cinema e discurso político. Produzido e realizado por integrantes do Cineclube Antônio da Mortes (CAM), este documentário poético experimenta articular linguagem fílmica e realidade do manicômio, dança e loucura. De que modo os cineclubistas encontraram no Cinema um tipo de mediação entre a resistência e um silêncio imposto pela Ditadura por intermédio de uma experiência estética?
Resumo expandido
- O filme Quinta essência (Goiânia, 1981, 16mm, 17'), de Lourival Belém Jr. e Ronaldo Araújo, produzido pelo Cineclube Antônio das Mortes (CAM), captura um fragmento do cotidiano dos internos num hospício de Goiás. De um lado, abandonados ou dopados, os internos da instituição perambulam pelo pátio interno, conversam sozinhos, olham para o nada, outros na sua solidão permanecem sentados no chão, mostrando em geral alienação relativamente à presença tanto da equipe de filmagem quanto da atriz, uma bailarina que dança livremente, sozinha ou entre eles, um provável funcionário ou psiquiatra, nos mais diversos espaços do estabelecimento.
Na maioria das cenas, solitária também, a bailarina revela entre os universos da loucura e da arte uma fratura. Isso gera tensão e angústia no público espectador até o instante em que, na segunda metade do filme, a bailarina começa a capturar a atenção dos internos, provocando-os a se mexer, até irem entrando na dança de algum modo. Esta cena de certo modo pode ser vista como expressão de um contexto de ruptura vivido por esta geração de cineclubistas que circulava livremente nas universidades, trabalho, cidade, mas em silêncio, no refúgio do espaço privado, conversando sozinhos.
O filme será tratado aqui como alegoria de um momento na história do Cineclube Antônio das Mortes que, fundado em 1977, era uma espécie de ponto de fuga para o grupo de universitários e intelectuais goianos que o formavam. Resistentes à Ditadura reuniam-se em casa para discutir filmes, articulando-os aos conhecimentos de filosofia e política que estudavam à margem da repressão. No espaço público exibiam filmes devidamente analisados e autorizados pela Censura.
Após a Anistia, o CAM avança em seus propósitos numa perspectiva de ir além de opacidades e transparências do discurso cinematográfico —o livro de Ismail Xavier era central nos estudos do cineclube— indo usar a própria câmera para intervir na realidade. Incluiu-se no debate a Psicanálise e a Psiquiatria nesse momento da sua primeira intervenção na realidade.
Para discutir de que maneira o cineclubismo fez neste documentário poético uma interface entre cinema e discurso político (buscando articular linguagem cinematográfica e realidade da instituição fechada, manicômio), escolheu-se a dança. Sua coreografia exprime algo da realidade dos internos. Ao imitar os movimentos da bailarina, que de fato os internos dificultosamente acompanhavam, se produzem movimentos espontâneos amplos, sorrisos alternados para a câmera, a bailarina e os demais, de modo que o espectador testemunha a mudança produzida naqueles corpos historicamente imobilizados pela medicação. A nossa análise busca compreender na sua descrição da mise en scène desta performance fílmica os instantes em que os internos percebem algum sentido na presença da câmera, ao mesmo tempo em que a bailarina reconduz sua dança numa construção interativa.
Nesta perspectiva, os cineclubistas encontraram no Cinema um tipo de mediação entre a resistência e um silêncio imposto pela Ditadura. A explicação deste efeito estético depende do comentário capaz de agenciar na descrição da forma fílmica os conteúdos sociais da história cultural e política do país, incluindo a atividade cineclubista.
Para os cineclubistas e para a pesquisadora Marina Campos (2014), este filme inaugura a segunda fase do CAM (1980-1984). Centrado na produção, realização e debates de filmes, ele contribuiu para a inclusão de questões elucidativas do campo da Psicanálise. Além de paradigmático para a produção do documentário goiano, Quinta essência nos ensina algo sobre as singularidades dos sujeitos nesse processo de construção fílmica.
Buscando a singularidade de Quinta essência nossa análise também busca aproximações comparativas com Passageiro de segunda classe (Luiz E. Jorge, 2001, 16mm, 22') com imagens captadas em 1986, que buscou compreender a estrutura e funcionamento do mesmo manicômio com procedimentos convencionais do documentário de denúncia.
Bibliografia
- Aumont, Jacques. Marie, Michel. L’Analyse des films. 3 e éd., Paris : Armand Colin, 2015.
Aumont, Jacques. À quoi pensent les films. Paris: Séguier, 1996.
Campos, Marina da Costa. O Cineclube Antônio das Mortes: trajetória, exibição e produção (1977-1987). Mestrado, UFSCar, 2014.
Cézar, Herondes. Era uma vez o cinema. São Paulo: Scortecci, 1996.
Costa, Jurandir Freire. História da Psiquiatria no Brasil: um corte ideológico. Rio: Xenon, 1989.
Foucault, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo : Perspectiva, 1964.
Jimenez, Stella. No cinema com Lacan: o que os filmes nos ensinam. Rio de Janeiro: Ponteio, 2015.
Lacan, Jacques. Télévision. Paris: Seuil, 1974.
Leão, Beto; Benfica, Eduardo. Goiás no século do cinema. Goiânia: Kelps, 1995.
Miller, Jacques-Alin. Lacan Elucidado. São Paulo : Jorge Zahar Editora, 1997.
Xavier, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio: Paz e Terra, 1977.