Trabalhos Aprovados 2018

Ficha do Proponente

Proponente

    Josette maria alves de souza monzani (UFSCar)

Minicurrículo

    Josette monzani é professora de cinema do Bacharelado e do Mestrado em Imagem e Som da UFSCar, SP, com Pós-Doutorado em Cinema pela ECA-USP, SP. Coordena o grupo de pesquisa “Cinema e Comunicação” do CNPq. Tem livros e artigos publicados sobre processos de criação audiovisual e de transcriação da literatura e das artes no cinema.

Coautor

    Rafaella Maria Bossonello Bianchini (UFSCar)

Ficha do Trabalho

Título

    Uma longa viagem, de Lucia Murat: um exercício narrativo epistolar.

Resumo

    O documentário Uma longa viagem (2011), de Lucia Murat, parte da correspondência do irmão da diretora com sua mãe, nos anos de 1970, período em que ele viajou pelo mundo. As cartas parecem ter dado início ao processo de criação de Murat que constrói o imbricamento das histórias de vida dos três irmãos: sobre a base piramidal das vivências de Lucia e Heitor, vivos, a narrativa ‘projeta’ a figura de Miguel, falecido. o passado vai ganhando ‘formas’, sobras ao ser revivido e representado na tela.

Resumo expandido

    A produção brasileira de documentários de temática política nos fornece olhares múltiplos sobre a construção da memória. Os trabalhos contemporâneos têm tomado rumos cada vez mais íntimos para tratar o tema. A ideia de mostrar apenas o acontecimento (o externo) dá lugar à ideia de escancarar a memória através de relatos pessoais da experiência (o interno). Essa leitura se dará a partir do documentário Uma Longa Viagem (2011) de Lucia Murat, onde se explora o contexto social dos anos de 1960 e de 1970, ou seja, o período ditatorial no Brasil e as vidas de três irmãos (incluindo a da documentarista). O fio condutor da trama são as cartas que narram a jornada do irmão caçula, Heitor, que é levado pela família para Londres a fim de se distanciar da luta estudantil contra a ditadura militar e evitar a trajetórias de vida de sua irmã, militante de esquerda perseguida pelo regime político. Com a morte do mais velho, Miguel, a documentarista retorna à sua juventude e à juventude de Heitor. As cartas de Heitor são o meio através do qual o filme perfaz a construção narrativa da diretora. Apesar de se afastar dos acontecimentos que levaram à prisão de sua irmã, Heitor também é atingido pelas desilusões de sua geração e acaba envolvido numa viagem pelo mundo e pelas drogas que dura aproximadamente dez anos. O documentário tem como foco a biografia de Heitor, mas também é, indiretamente, uma autobiografia da documentarista. O irmão mais velho, antigo alicerce para os dois, pouco aparece, mas é o ponto de encontro do desejo de contar a história que os três viveram. Murat, entre outros recursos, utiliza-se de encenações de monólogos contidos em cartas fatuais de Heitor, que é interpretado pelo ator Caio Blat nesses momentos. Os recursos de projeções de imagens atuais de cenários que Heitor cita nas suas cartas antigas, assim como o recurso de projetar os textos das cartas sobre superfícies texturizadas e sobre o rosto do próprio ator trazem ainda mais a sensação de que sua viagem pelo mundo foi não apenas geográfica, mas também interna. As questões da repressão da Ditadura Militar, da luta contra ela e do envolvimento de toda uma geração está nesta narrativa com ainda mais força porque é ao adentrar nos universos pessoais desses atores sociais que entendemos de forma ainda mais intensa a memória política daquele período histórico. É olhando para os “detalhes” que sentimos o “todo” sendo erigido. As epístolas recolhem o passado pessoal e de época de Heitor e este vai ganhando ‘formas’, sombras ao ser revivenciado na tela, conjugado às trajetórias de seus irmãos.Essa narrativa epistolar que Murat constrói será melhor discutida por nós através, especialmente, da obra Cinema, vídeo, Godard de Philippe Dubois, mais especificamente no capítulo “Por uma estética da imagem de vídeo”. Aqui, a intimidade singular do documentário autobiográfico, parte de questões que o vídeo trouxe como recursos, tais como: a sobreimpressão (sobreposição e transparência) das imagens através de projeções das epístolas e/ou de projeções das imagens que evocam as narrativas das epístolas, seja no cenário ou no próprio corpo do ator; as janelas (justaposição) através, por exemplo, da cena em que o ator que interpreta Heitor na juventude (ou seja, no passado) divide a tela e a voz com a mesma “fala” que o Heitor real (e mais velho) do presente; e a composição de imagem (ou escala de planos) através das “texturas” criadas na tela pelo ator, pelo cenário e pelas projeções: a espessura da imagem que encontra várias “camadas” na tela, seja de referências ou de atuação. Dessa forma, pretende-se debater sobre os recursos de vídeo usados por Murat na criação de uma narrativa epistolar para um documentário por vezes auto e biográfico na construção de uma memória que é tão pessoal quanto nacional. Conduzirão a discussão também as obras Estética da Montagem, de Vincent Amiel; O filme-ensaio: desde Montaigne e depois de Marker, de Timothy Corrigan, entre outros.

Bibliografia

    AMIEL, V. ESthétique du montage. Paris: Armand Colin, 2010.
    ADAMATTI, M.; MORETTIN, E. et alii. (ORG.). Cinema e História. Circularidades, arquivos e experiência estética. Porto Alegre: Sulina, 2017.
    CORRIGAN, T. O filme-ensaio. Desde Montaigne e depois de Marker. Campinas, SP: Papirus, 2015.
    DUBOIS, P. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac&Naify, 2013.
    GENETTE, G. Figuras III. São Paulo: Estação Liberdade, 2017.
    ZERNIK, C. L´oeil et l´objectif. La psychologie de la perception à l´épreuve du style cinématographique.Paris: Vrin, 2012.