Trabalhos Aprovados 2018

Ficha do Proponente

Proponente

    Maria Bogado (PPGCOM/ECO/UFRJ)

Minicurrículo

    Formada em Comunicação Social pela UFRJ. Foi monitora das disciplinas de Linguagem do Audiovisual I e II, sob orientação de Anita Leandro e Guiomar Ramos. Mestra em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela Puc-Rio. Doutoranda em Comunicação sob orientação de Anita Leandro. Desenvolve pesquisa sobre documentário brasileiro contemporâneo. Editou a Revista Beira entre 2015 e 2017.

Ficha do Trabalho

Título

    Encontros e fraturas: do testemunho verbal ao visual

Seminário

    Cinema brasileiro contemporâneo: política, estética, invenção

Resumo

    A comparação entre Serras da Desordem(2006) e Martírio(2016) mostra aproximações na elaboração de uma ética do encontro que não dissimula a distância entre os diretores e os grupos que filmam Os filmes afirmam a impossibilidade de compreensão total do outro como possibilidade para o questionamento de si Percebe-se uma mudança de contexto significativa:o último plano de Martírio mostra a recente emergência da possibilidade de grupos em situações de risco produzirem imagens com valor de testemunho

Resumo expandido

    Uma década separa os lançamentos de Martírio, de Vincent Carelli (2016) e Serras da Desordem, de Andrea Tonacci (2016). Os dois filmes apresentam pontos cruciais de aproximação Ambos se esforçam na tentativa de construir ou retomar imagens de histórias – ligadas ao genocídio das populações indígenas – notadamente marcadas pela invisibilidade e até mesmo pela indizibilidade. As narrativas são construídas na fricção do encontro, situam-se nesse espaço tenso entre indígenas e não indígenas, entre as vítimas dos massacres e os diretores. Tonacci e Carelli abrem espaço para a exposição da fratura, para a exposição da distância irrevogável entre eles e os grupos que filmam. Os diretores apresentam a incompreensão total do outro como oportunidade para se pensarem a si mesmos e aos grupos aos quais pertencem.
    Diante da invisibilidade das singularidades da história de Carapiru, índio sobrevivente a tentativa de massacre de sua aldeia, Tonacci opta por duas estratégias. O diretor recupera imagens pessoais dos sertanejos, e, paralelamente, opta pela reencenação dos ocorridos, promovendo um espaço híbrido entre a reconstrução e a fabulação. A partir desses dois dispositivos, a memória de Carapiru e daqueles que cruzaram sua trajetória é ativada, disparando falas que elaboram e interpretam os ocorridos a partir do presente. Já Carelli, além das entrevistas e do uso extensivo de materiais de arquivo, busca preencher essas lacunas de invisibilidade das lutas de resistência dos indígenas com a democratização do acesso à produção de imagens. Busco compreender a narrativa de Martírio como a da mutação da relação dos indígenas com a imagem. Se no primeiro plano do filme são filmados por Carelli – que afirma ter deixado seus projetos autorias para se dedicar a formação de cineastas indígenas – no último plano o diretor apresenta imagens realizadas pelos próprios com uma câmera concedida por ele.
    Entretanto, para além do tema e do confronto com a invisibilidade, gostaria de aproximar os dois filmes pela ética do encontro manifesta em suas relações com a fala e com as imagens. É extremamente elucidativo que ambos se iniciem com cenas faladas nas línguas originárias dos indígenas apresentadas sem tradução. Proporcionam uma aproximação sensível do espectador diante daquilo que não poderá compreender ou interpretar por completo. Quando Tonacci expõe a fala do sobrevivente Carapiru, se não podemos compreender o que índio fala, compreendemos pelo menos que ele compreende a si, que tem uma narrativa própria que independe da nossa compreensão. É o suficiente para deslocar sua posição de objeto para uma posição de sujeito, diante da qual nossa própria incompreensão possa emergir como objeto.
    Traçar esse paralelo ajuda a compreender melhor a montagem do último plano do filme de Carelli, filmado pelos indígenas em situação de risco. As imagens que produzem quando tentam se proteger do ataque realizado contra a aldeia são a materialização de uma nova forma de testemunho diante das atrocidades do presente (LEANDRO, 2014). Agora, a fala do outro se produz também enquanto imagem. A legibilidade dessas imagens – se são ou não legíveis por completo, ou como devem ser lidas – torna-se um problema ético (BENJAMIN; DIDI-HUBERMAN) Em sua montagem, Carelli expõe o tremor e a falha ao representar a paisagem e os invasores. O plano preserva um grau de incomunicabilidade e singularidade análogo ao de uma fala testemunhal acerca de acontecimentos traumáticos. Sua fala em off, em vez de explicar o que ocorre, como faria um narrador de telejornal, traz mais uma camada de reflexão sobre o tema. Esse gesto não explicativo ecoa a opção pela não tradução, já presente no Serras. Carelli se pergunta se o Estado brasileiro continuará a cometer tais atrocidades. Ao manter uma distância em relação à imagem, o diretor em vez de lhe dar um sentido que apazigue sua compreensão, apresenta sua difícil legibilidade colocando em questão também aquele que a leria, o espectador brasileir

Bibliografia

    AGAMBEN, Giorgio. Karman – Court traité sur l’action, la faute e le geste. Paris: Éditions SEUIL, 2018.
    BENJAMIN, Walter. Magia técnica, arte e polítca: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221.
    _________________. Passagens. Belo Horizonte: EDITORA UFMG, 2009.
    14
    BRASIL, André. Retomada: teses sobre o conceito de história. In: Catálogodo Forum Doc.BH.20 anos, 2016, p. 145-162.
    DERRIDA, Jacques. Sovereignties in Question, The poetics of Paul Celan. New
    York: Fordham University Press, 2005.
    DIDI-HUBERMAN, Georges. Peuples exposés, peuples figurants. L’OEil de l’histoire, 4. Paris: Minuit, 2012.
    ________________________. Imagens apesar de tudo, trad. V. Brito e J. P. Cachopo, Lisboa, KKYM, 2012. (e-book).
    LEANDRO, Anita. Sem Imagens. Estudos da língua(gem), v. 12, n. 1, jun. de 2014. p.121-134.