Ficha do Proponente
Proponente
- Joice Scavone Costa (UFF)
Minicurrículo
- Joice Scavone é doutoranda em Cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Dirigiu e roteirizou o média-metragem Fome e foi curadora da retrospectiva completa Fritz Lang – O horror está no horizonte no CCBB, realizados por sua por sua produtora Raio Verde Filmes. Atualmente leciona nas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA) e Academia Internacional de Cinema (AIC) no Rio de Janeiro.
Ficha do Trabalho
Título
- A dublagem AFETADA de Doce Amianto (2013)
Seminário
- Estilo e som no audiovisual
Resumo
- Agambem (2005) afirma que “A voz, realmente, é índice da dor e do prazer”. Na compreensão clássica da experiência, trata-se de um som que emite o desejo que agencia potências para além e antes da racionalização (SCOTT, 1999). Doce Amianto (PARENTE & dos REIS, 2013) contém a voz deslocada da boca de seus personagens que, ao libertar-se do signo da fala, amplia as possibilidades do áudio do filme e intensifica as características dos timbres do corpo, dissimulando tais peculiaridades.
Resumo expandido
- O filme Doce Amianto (2013) conta dramas universais transvestidos em fantasia (conto de fadas) e em fantástico (sobrenatural), através de histórias que contém o deboche da condição humana (hipocrisia). A “doce” Amianto (uma fibra sedosa de alta resistência flexível e durável) sofre com as incompatibilidades, solidões, rejeições e com a “morte” da fantasia Barbie de ser. Ela não segue o modelo do individualismo clássico, seguramente inserido no contexto de redes sociais claramente delineadas, de onde sua identidade também claramente definida emergiria.
A atenção dada aos sentidos para além dos olhos ao longo do filme é um prato cheio para o desenvolvimento das possibilidades na utilização estilística do som na obra audiovisual. Dentre outros elementos da trilha sonora, a voz pode libertar-se da boca e ocupar o ambiente do espaço que habita, sem ponto de escuta ou fonte sonora, o som finalmente preenche todo o território na sua máxima materialização do corpo. Doce Amianto atualiza os extremos estéticos das vozes dos castratti e das divas da ópera, cuja afetação potencializa a artificialidade das características de captação e reprodução do som no longa-metragem cearense.
A narrativa enuncia o desafio para a constituição de novas afetividades, diante do declínio do amor romântico heterossexual, das mudanças de papéis decorrentes dos processos de mudanças sócio-econômica, irrompe e subverte outras sensibilidades, trabalhando via paródia, pastiche e exagero. É fácil associarmos o comportamento da personagem e da obra cinematográfica com o “camp”, estilo de comportamento que pode ser comparado à atitude exagerada de certos homossexuais, ou simplesmente à “afetação”.
Na esfera estética, o camp seria o estilo “brega assumido, sem culpas”, mas também a idéia de “reconciliar a essencial marginalidade desse comportamento com sua evidente ubiqüidade, mantendo sua diversidade” (BOOTH, M.: 1983, 11). O filme cearence traz nas entrelinhas de sua temática universal a condição de “oprimido” da personagem que descortina a natureza artificial de categorias sociais e a arbitrariedade dos padrões de comportamento.
Parente e dos Reis utilizam a palavra escrita, a palavra a falada e a linguagem cinematográfica para trabalharem essa fantasia do cotidiano e da valorização da beleza no próprio estilo de “escrita”; uma linhagem de estetas da vida, delineada pelos poetas malditos românticos. Através de “brincadeiras” com o efeito de uma lente cinematográfica e demais elementos da fotografia, figurinos, direção de arte e edição do som, as construções cinematográficas são escancaradas tal qual a feminilidade fake das travestis.
A travesti, cindida “entre o exagero da afetividade e a festa das aparências” é “uma pulsão de simulação” que constitui seu próprio fim (SARDUY, S.: 1981, 9). A voz da doce Amianto contém a intensidade de subversão de uma captação sem profundidade – microfone direcional no set – que captura apenas a superfície da voz masculina afetada – microfone omnidirecional. O recurso prejudica também a inteligibilidade do texto, relegando a Idéia/ o sentido a segundo plano.
A dublagem “mal realizada” e fora de sincronia escancara, além da marginalidade do modo de produção do filme, o estilo que investe na expressividade do diálogo na contra-mão da norma determinada desde o surgimento dos “Talkies”. O desvio da norma circunscreve o uso da voz pelos cineastas autorais cearences na relação direta entre o processo criativo e a ideologia camp. A tecnologia “mal utilizada” perceptível no momento de escuta corrobora ao artificiaismo proposto por toda a materialidade do filme no contexto cultural e histórico da obra, que aproxima o filme à “existência trágica” da travesti que em todo lugar é percebida como engraçada (LONG, S.: 1993, 78/9) e sem/ fora do lugar.
Bibliografia
- AGAMBEN, Giorgio. “O que é o contemporâneo” In: O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009, p. 55/76.
_________________. “Infância e História: Ensaio sobre a destruição da experiência” In: Infância e História. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2005, p. 19/78.
BOOTH, Mark. “Camp”. Londres/New York: Methuen/Quartett, 1983.
CARREIRO, Rodrigo; ALVIM, Luíza. “Uma questão de método: notas sobre a análise de som e música no cinema”. Matrizes (USP), v. 10, n. 2, São Paulo, p. 175-193, 2016.
CHION, Michel. “A audiovisão”. Lisboa: Texto & Grafia, 2011.
JAECKLE, Jeff (org.). “Film Dialogue”. London: Wallflower Press, 2013.
LONG, Scott. “The Loneliness of Camp” in BERGMAN, David (org.). Op. Cit. 1993.
SARDUY
LOPES, Denilson. “Terceiro manifesto camp”. In: ______. O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002, p. 95-100.
SCOTT, Joan. “Experiência” In RAMOS, Tânia et allii (orgs.). Falas de Gênero. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1999, p. 21/56