Trabalhos Aprovados 2018

Ficha do Proponente

Proponente

    Mariana Duccini Junqueira da Silva (UNICAMP)

Minicurrículo

    Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Atualmente, desenvolve estágio pós-doutoral junto ao Programa de Pós-Graduação em Multimeios na Unicamp (PNPD-CAPES)

Ficha do Trabalho

Título

    Rastros de arquivo, restos de revoluções: “No intenso agora” (2017)

Resumo

    Propomos a análise do filme ‘No intenso agora’ (J. M. Salles, 2017), observando como o emprego de materiais de arquivo problematiza os efeitos de atestação em nome da construção de relações que fazem emergir o caráter sintomático das imagens, marcado pela inscrição, nos fragmentos, de uma temporalidade anacrônica (entendida não como uma falha cronológica, mas como a coexistência de diferentes regimes de verdade, sublinhando a potência de imagens que resistem e a ressignificação da experiência).

Resumo expandido

    O caráter aberto e lacunar privilegiado nas produções audiovisuais que trabalham com materiais de arquivo, no documentário contemporâneo, problematiza os efeitos de atestação inerentes a essa modalidade enunciativa, desestabilizando, em determinados aspectos, o próprio teor documental dos enunciados de base. Sob essa perspectiva, o exercício da montagem, ao tensionar as versões estabelecidas das narrativas históricas que conformam os imaginários sociais, suscitam outros tipos de vínculo dos sujeitos com o passado (Figueiredo, 2017).
    Intentamos, com isso, uma análise do filme No intenso agora (João Moreira Salles, 2017), observando como a prática da compilação de materiais de arquivo, na obra, desloca-se de uma vocação hermenêutica (com o intuito de estender à imagem os sentidos socialmente naturalizados, em vista de sua vinculação a narrativas históricas específicas) rumo à construção de relações que fazem emergir o caráter sintomático das imagens, marcado pela inscrição, nos próprios fragmentos, de uma temporalidade anacrônica (aqui entendida não como um defeito de ordem cronológica, mas como a emergência de um sistema de pensamento e percepção em outro(s), sublinhando a potência das formas que resistem, transformam-se e engendram novos contextos junto à instância espectatorial).
    À luz da reflexão benjaminiana, que concebe a experiência do passado como a aparição de uma imagem que fulgura e se desvanece no momento mesmo de seu reconhecimento, inferimos que a dinâmica peculiar do trabalho com os arquivos audiovisuais torna indissociáveis, em seu processo enunciativo, três movimentos: a delimitação do contexto “original” em que circularam os fragmentos, assim como o estatuto valorativo a eles então atribuído; os procedimentos de reemprego dessas materialidades em novas modalidades enunciativas, por meio da montagem; e os efeitos de ressignificação das imagens e dos sons a partir desse processo. A possibilidade de se evidenciar novas conexões de sentidos relativas a imagens outrora circulantes, nesse horizonte, pressupõe a própria ressignificação das práticas sociais, que passam a conformar outros regimes de crença e veredicção quanto aos sentidos das experiências coletivas na contemporaneidade.
    Ao reunir excertos de filmes célebres e de registros amadores – em que ganham relevo as filmagens tomadas pela mãe do realizador na China nos anos 1960 –, o documentário de João Moreira Salles alcança força expressiva, sobretudo, pela dimensão do anacronismo que propõe.
    O tom de entusiasmo que impulsionava a adesão dos jovens aos levantes de 1968 na França, à Primavera de Praga ou à Revolução Cultural chinesa é impregnado, na obra, de um sentido de desconexão em relação ao momento contemporâneo. Paradoxalmente, a nota de melancolia que ecoa na narrativa fílmica tem menos a ver com o reconhecimento de um “tempo perdido” do que com a confrontação com os restos da experiência, ou seja, com as imagens que sobreviveram.
    Trata-se da remetência entre um sujeito e um espírito de época que não fora diretamente vivenciado, cujos rastros temporais – materializados pelos arquivos imagéticos e sonoros – seguem, entretanto, ecoando na própria condição subjetiva: não nos termos de uma volta ao passado para apreendê-lo como uma continuidade, mas reconhecendo no anacronismo a espessura da história, que faz remontar a uma ordem do tempo as experiências que exorbitam a mera cronologia.

Bibliografia

    Benjamin, W. Sobre o conceito de História. In: O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.
    Blümlinger, C. Cinéma de seconde main: Esthétique du remploi dans l’art du film et des nouveaux médias. Paris: Klincksieck, 2013.
    Cocker, E. Ethical Possession: Borrowing from the archives. In: Smith, I. R. (ed.). Cultural borrowings: Appropriation, reworking, transformation. Nottingham: Scope: An Online Journal of Film and Television Studies. [pp.92-110]. Disponível em:https://www.nottingham.ac.uk/scope/documents/2009/culturalborrowingsebook.pdf
    Figueiredo, V.L.F. Ficção e resistência na cultura de arquivo. In: MATRIZes. V.11. N.3. set-dez 2017. São Paulo: ECA-USP, pp.57-70.
    Leyda, J. Films beget films. London: Allen & Unwin LTD, 1964.
    Rancière, J. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, M. (org.). História, verdade e tempo. Chapecó: Argos, 2011.