Ficha do Proponente
Proponente
- João Victor de Sousa Cavalcante (UFPE)
Minicurrículo
- Doutorando em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com projeto sobre as figurações da monstruosidade no cinema. Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Pesquisador vinculado ao Imago: laboratório de estudos de estética e imagem (UFC) e ao Grupo Narrativas Contemporâneas (UFPE). Tem interesse nas áreas: cinema, literatura, cultura visual, imaginário, monstruosidade.
Ficha do Trabalho
Título
- O animal errante: natureza, corpo e paisagem em O Ornitólogo
Resumo
- O trabalho elabora questionamentos sobre a relação entre corpo e paisagem no filme O Ornitólogo (2016), com o intuito de pensar a floresta como um espaço limítrofe e heterogêneo, que emerge na narrativa fílmica como uma zona autônoma. Interessa-nos pensar como a interação do personagem com o ambiente aciona uma ecologia fílmica que problematiza a relação fronteiriça natureza-cultura, a partir do processo de imersão na paisagem e na vivência com o animal.
Resumo expandido
- O trabalho investiga as relações entre corpo e paisagem no longa-metragem O Ornitólogo (2016), do cineasta português João Pedro Rodrigues. Interessa-nos pensar a floresta como um espaço limítrofe, cuja recorrência no cinema remete a uma ambivalente carga simbólica, e que se apresenta n’O Ornitólogo como uma zona movediça, de existência autônoma, que emerge no espaço fílmico como uma paisagem mística, ligada ao estranhamento.
O filme se desdobra sobre Fernando, cientista que observa aves em uma região portuguesa próxima à fronteira com a Espanha. Levado pela correnteza em um acidente de barco, o ornitólogo é resgatado por duas religiosas peregrinas chinesas que decidem puni-lo pelo seu manifesto ateísmo. As fugir do castigo, abre-se para Fernando um caminho de errância marcado pela relação com o animal. A narrativa reconta saga de Santo Antônio de Pádua por meio de um movimento de transformação empreendido por Fernando, que se despe da racionalidade de homem da ciência e experimenta uma imersão na natureza e posterior ascensão na figura do santo. Com poucos diálogos e uma temporalidade lenta, o filme justapõe elementos da ordem do sagrado e do erótico, ressignificados no corpo e na paisagem.
O deslocamento empreendido por Fernando é, também, uma movimentação do olhar: inicialmente temos o observador racional, colonizador, ocupando um espaço de poder escópico e catalogador em relação à natureza, para em seguida vivenciarmos uma desacomodação desse olhar, um perspectivismo mais fluido (VIVEIROS DE CASTRO, 2002), em que somos levados a assumir o ponto de vista das aves que, por sua vez, também observam Fernando.
Esse movimento de tensão entre observador e observado aciona uma problemática entre natureza e cultura (animal e homem), marcada pela relação que o personagem tem com o território da floresta, criando uma torção na relação entre corpo e paisagem.
O filme nos conduz para um movimento corpóreo de exploração do espaço inóspito da floresta, estrangeiro em relação ao espaço urbano, de modo que o apelo estritamente visual da natureza perde seu sentido como um contraponto ao cultural e adquire um caráter de experiência com acentuada autonomia narrativa, que não é conduzida apenas pelas ações do personagem. Vemos, em O Ornitólogo, uma ascensão da floresta como elemento fílmico, que impõe sua presença na narrativa, não sendo apenas palco para as ações do personagem. Observamos um deslocamento da ideia de cenário para a de paisagem, em que esta ocupa um lugar de autonomia no espaço filmado em relação à ação (LEFEBVRE, 2006).
A natureza não marca aqui um espaço de fuga telúrica ou um ambiente hostil, imagens que remetem a um distanciamento, a uma alienação em relação ao homem. O que temos é a própria floresta como um elemento narrativo que aciona outro tipo de ecologia fílmica ao trazer as relações entre homem e natureza marcadas por um tensionamento de forças, que torna fluída a perspectiva antropocêntrica e conduz o personagem por um processo de devir- animal (DELEUZE&GUATARI, 1996), figurado no filme por uma errância e pelos embates do corpo com o ambiente.
A errância, movimento em que Fernando singra e imerge na paisagem, acomoda-o de modo conflituoso na fauna existente. A relação com o animal e o crescente afastamento do universo da cultura é evidenciado pelo abandono de marcas civilizatórias (fogo, telefone, carro) e de marcadores de individualidade (roupas, impressões digitais, nome próprio). Ao deslocar proposições tradicionais de paisagem e corpo (fundo e figura), o filme cria uma ambiência em que os limiares entre natureza e cultura desmontam-se em nome de uma zona limítrofe, em que o personagem torna-se, ele próprio, um ser fronteiriço, monstruoso.
O trabalho tem ancoragem conceitual (além dos autores citados) no pensamento do filósofo Eugénio Trías sobre o tema do limite, além de autores que versam sobre a questão da paisagem (CAUQUELIN, 2007; INGOLD, 2000; NANCY, 2005).
Bibliografia
- CAUQUELIN, Anne. A Invenção da Paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
DELEUZE, Gilles & GUATARI, Felix. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia (volume 2). Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.
INGOLD, Tim. Temporality of the landscape. In: INGOLD, Tim. The Perception of the Environment: essays in livelihood, dwelling and skill, Londres, Routledge, 2000.
LEFERBVRE, Martin (ed). Landscape and film. Londres: Verso, 2006.
NANCY, Jean-Luc. The ground of the image. Nova York: Fordham University Press, 2005.
TRÍAS, Eugenio. Los limites del mundo. Barcelona: Editora Destino, 2000.
____________. Lo Bello e lo Siniestro. Barcelona: Editora Debolsillo, 2006.
____________. El Hilo de la Verdad. Barcelona: Editora Imago Mundo, 2004.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O nativo relativo. In: Mana 8(1), 2002, 113-148.