Ficha do Proponente
Proponente
- Marcius Freire (UNICAMP)
Minicurrículo
- Professor Associado (Livre-docente) do Dept. de Cinema e do PPG em Multimeios da UNICAMP. Autor de Documentário. Ética, estética e formas de representação, além de inúmeros artigos e capítulos de livros sobre o campo fílmico. Organizou com Philippe Lourdou, Université de Paris X–Nanterre, o livro Descrever o Visível. Cinema documentário e antropologia fílmica; coedita com Manuela Penafria, Universidade da Beira Interior-Portugal, o periódico “Doc on-line. Revista Digital de Cinema Documentário”.
Ficha do Trabalho
Título
- Autobiografia, autoficção e autorretrato. A Babel Boris Lehman
Mesa
- Eu, na tela, ser o outro. Aproximações ao filme em primeira pessoa.
Resumo
- Filme diário, filme autobiográfico, filme autoficcional…, as formas de identificação do filme em primeira pessoa são múltiplas e todas encerram suas particularidades essenciais. Tendo como ponto de partida a obra “Babel. Lettre à mes amis restés en Belgique”, do cineasta Belga, de origem polonesa e nascido na Suíça, Boris Lehman, nossa proposta é refletir sobre as nuances dessas “modalidades fílmicas” averiguando como elas se acomodam no interior do gênero documentário no qual estão alojadas.
Resumo expandido
- Todos sabemos que, no cinema, a máquina de registrar o movimento das coisas do mundo já nasce praticamente olhando para os seus próprios inventores. Ou seja, a presença do “Eu” criador, do demiurgo, já consta da primeira projeção oficial do cinematógrafo no “Salon indien du Grand Café” que passou a acontecer a partir de 28 dezembro 1895. De fato, dos 10 filmes que compunham a mostra dos Lumière, eles próprios são mostrados em pelo menos três deles.
Outro pioneiro, Méliès, presente na primeira exibição e potencial comprador do engenho, logo que atingiu o seu objetivo se colocou diante das… objetivas e passou a ser ele próprio o objeto do olhar de sua câmera. O mago das imagens em movimento queria divertir se divertindo. E, para tanto, não hesitava em se mostrar em cena, em se multiplicar através de seus truques, em contracenar consigo mesmo explodindo a própria cabeça.
Tais fatos não constituem propriamente uma première na história das invenções. Santos Dumont voou em seus proto-aviões; o mesmo fizeram os irmãos Wright. Mas, o que nos interessa aqui é a relação que, logo nos seus primórdios, começa a se estabelecer entre o filmador e o filmado, ou dizendo de outra forma, entre quem se arma desse instrumento de registro das coisas do mundo e aquilo que ele escolhe nesse mundo para ser filmado. Mais especificamente, o cerne do nosso interesse é quando essas duas instâncias se confundem.
Em que pese esse começo autocentrado – pelo menos do lado europeu do Atlântico [não nos consta que T. Edison tenha servido de modelo para suas fitas kinetoscópicas] -, o filme propriamente autobiográfico só vai desabrochar e merecer esse epíteto – mesmo que este lhe tenha sido atribuído muito anos depois – no final dos anos 1950, começo dos anos 1960. Um nome que deve ser sempre lembrado quando se trata de filme autobiográfico ou filme em primeira pessoa: Stan Brakhage. Foi ele que, na virada dos anos 1950 para os anos 1960 começa a filmar sua vida privada nas montanhas do Colorado. Brigas em família, nascimento de um filho, enterro do cão de estimação etc.
Boris Lehman, por sua vez, começou a fazer seus filmes um pouco depois, no começo dos anos 1960. Em mais de 50 anos de atividades, dirigiu curtas e longas-metragens, em Super 8 e 16 mm, somando mais de 400 títulos. Suas realizações transitam por todas as modalidades do filme em primeira pessoa. Sua vida se confunde a tal ponto com as suas obras que ele afirma não fazer seus filmes, mas ser feito por eles.
Se para Serge Doubrovsky, o criador do conceito de “autoficção” em literatura, esta se define como “ficção, de fatos e de acontecimentos estritamente reais”, encontram-se autoficções na obra de Lehman; se na autobiografia é necessário que o autor, o narrador e o personagem se confundam, como quer Philippe Lejeune, grande parte dos filmes de Lehman é autobiográfica; se, para Michel Beaujour, contrariamente ao autobiógrafo, o autorretratista afirma “Eu não vou lhes contar o que eu fiz, mas vou lhes dizer quem eu sou”, Boris Lehman realizou autorretratos; se acompanharmos Langford & West quando afirmam que “o diário balança entre a escrita literária e a escrita histórica, entre a espontaneidade e a reportagem, entre si mesmo e eventos, entre o público e o privado”, encontram-se muitos cine-diários na filmografia de Boris Lehman.
Certamente em razão das múltiplas estratégias fílmicas de que lança mão, o cineasta declara que “[seus] filmes não são longos nem curtos. Não são documentários nem ficções. Eles são sempre o mesmo filme, um filme único, um cinejornal escrito no dia a dia, em pequenos pedaços, com migalhas acumuladas”. E continua: “O que é o cinema de Boris Lehman? Talvez seja um cinema que procura justamente uma definição, que hesita entre documentário etnográfico, filme científico, ficção experimental, filme terapêutico e filme autobiográfico”.
É sobre esse não lugar em que se encontram os filmes de Boris Lehman que esta comunicação vai se debruçar
Bibliografia
- BALINT, Alice, FENICHEL, Otto, FERENCZI, Sandor et Collectif, « L’Identification. L’Autre c’est moi ». Paris: Tchou Éditeur, 1998
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