Ficha do Proponente
Proponente
- Vitor Zan (Paris 3)
Minicurrículo
- Graduado em cinema pela Universidade Federal de Santa Catarina, concluiu o mestrado em estudos cinematográficos e audiovisuais na Universidade Paris 3, onde cursa atualmente o doutorado. Atua temporariamente como professor na Universidade Paris 7.
Ficha do Trabalho
Título
- Uso e abuso da referência a Casa-Grande & Senzala pelo campo do cinema
Seminário
- Cinema comparado
Resumo
- Críticos, cineastas e acadêmicos fazem incontáveis referências ao livro Casa-grande & Senzala ao comentarem filmes como O som ao redor, Doméstica, Que horas ela volta? e Aquarius. A maioria dessas alusões não condiz, entretanto, com a perspectiva de Gilberto Freyre, e tampouco leva em conta aquilo que distancia os filmes do pensamento do sociólogo. Restringindo-se à esfera do conteúdo, tais aproximações deixam ainda inexploradas uma vasta gama de correspondências possíveis.
Resumo expandido
- Ao menos desde 2012, com o lançamento de O som ao redor e de Doméstica, é notável o sem-número de referências, por parte de críticos, cineastas e estudiosos do cinema brasileiro, ao livro Casa-grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre. A tendência se intensificou com a chegada de Casa grande, Que horas ela volta?, ou mesmo Aquarius, o que nos levou, por um lado, a examinar o teor dessas alusões e, por outro lado, a propor novos tipos de correspondência entre essas obras e o pensamento do sociólogo, sejam eles de aproximação ou de distanciamento.
Muito embora onipresente, a referência a Casa-grande & Senzala é geralmente fortuita, e não condiz com o universo descrito por Freyre. Trata-se, no mais das vezes, de tomar o livro como ícone das injustiças do passado colonial, esquecendo que o ponto de vista de Gilberto Freyre sobre a escravidão no Brasil é fortemente idealizado. Em seu intuito de positivar a miscigenação supostamente originária do povo brasileiro, o autor dá ênfase à complementaridade entre antagonismos, o que o leva a sustentar, por exemplo, que o sadismo do colonizador português coadunou-se com um suposto masoquismo da negra ou da índia, afirmando ainda, por essa mesma lógica, que “o sistema casa-grande-senzala […] chegara a ser – em alguns pontos pelo menos – uma quase maravilha de acomodação : do escravo ao senhor, do preto ao branco, do filho ao pai, da mulher ao marido”. Ou seja, as menções a Freyre tendem a omitir o que, no decorrer da história, se tornou retrógrado em sua obra.
Afora as divergências, é proveitoso incluir nesse exercício comparativo elementos que ultrapassem a esfera do conteúdo, refletindo, por exemplo, sobre as relações entre a linguagem escrita do sociólogo e a linguagem audiovisual dos cineastas, ou ainda entre o tipo de sociologia desenvolvido em Casa-grande & Senzala e a corrente do realismo social a qual os filmes tendem a se filiar. Com efeito, a sintaxe despojada de Casa-grande & Senzala levou a afirmação de que “o livro […] se torna quase uma novela”, criando uma experiência de leitura cujos efeitos são em certos pontos típicos do realismo (como o efeito de real, de “revelação” do familiar, ou de simples proximidade entre obra e leitor-espectador). A atenção que Freyre atribui aos escravos faz eco na iniciativa dos artistas realistas do século XIX, que passaram a incluir as classes desfavorecidas em suas obras, o que nos filmes se manifesta pela densidade conferida a empregados domésticos, que deixam de ser figurados como meros elementos do cenário.
A metodologia inusitada de Gilberto Freyre, que leva em conta elementos corriqueiros, tidos como desprezíveis, bem como sua “paixão pelo detalhe, […] pelo concreto”, fazem pensar no fato de que as alegorias dos filmes estão organicamente atreladas a pormenores do dia-a-dia, tendo sido elaboradas por “cineastas-habitantes” cujas obras foram amplamente nutridas pela observação do cotidiano. O lugar de fala do escritor também se assemelha ao dos cineastas no que diz respeito ao pertencimento à elite. E embora todos tenham se esforçado para se opor a perspectivas dominantes em sua classe, suas obras guardam resquícios de uma perspectiva elitista. Contudo, contrariamente ao que querem alguns comentadores, o pensamento de Freyre não é tão esquemático quanto os filmes, ainda que a forma polinuclear de O som ao redor remeta ao mosaico composto pela argumentação de Freyre.
A perspectiva do sociólogo promove uma reconciliação reconfortante do povo brasileiro com seu passado, enquanto que os filmes, sobretudo O som ao redor, ressaltam o mal-estar, salientam o desarranjo social, visando compor um vetor de transformação por esse viés crítico. Daí a diferença no tom geral das obras, mais descontraído em Freyre e mais tenso nos filmes. Ainda assim, uns e outros compartilham a tentativa de vislumbrar, no ambiente familiar, no seio das habitações, relações de poder capazes de compor um microcosmo das relações sociais de uma comunidade.
Bibliografia
- ARAGÃO, Solange. Ensaio sobre a casa brasileira do século XIX. Blucher, 2017.
AUMONT, Jacques (dir.). Pour un cinéma comparé: influences et
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– – – – – Sobrados e Mucambos. José Olympio, 1977 [1 ed. 1936] LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro : história de uma ideologia. Pioneira, 1976.
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SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso – da escravidão à Lava Jato. Leya, 2017.
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