Ficha do Proponente
Proponente
- Ana Carolina Roure Malta de Sá (UnB)
Minicurrículo
- Doutoranda em Comunicação Social, na linha Imagem, Som e Escrita, pela UnB. Possui mestrado em Comunicação Social, na mesma linha, pela UnB (2014), especialização em Filosofia da Arte, pelo Instituto de Filosofia e Teologia do Estado de Goiás (2008) e graduação em Letras (português/inglês), pela PUC Goiás (2007). Ministrou as disciplinas Língua Portuguesa, Leitura e Produção de Textos Acadêmicos, Análise Fílmica e História da Arte e do Cinema I e II, no Instituto Maua de Pesquisa e Educação.
Coautor
- Susana Dobal (UnB)
Ficha do Trabalho
Título
- A Erva do Rato: quando a luz e a sombra criam sentidos
Seminário
- Teorias e análises da direção de fotografia
Resumo
- A luz e a sombra no filme A Erva do Rato (2008), de Júlio Bressane, atuam como condutores da narrativa, produzindo uma atmosfera obscura habitada pelo desejo. A direção de fotografia de Walter Carvalho cria sombras e duplos que deambulam entre as cenas. Eles estão relacionados ao desejo e a temas como o voyeurismo, o exibicionismo, a pulsão de morte, o sadismo e o abjeto. Referências ainda a uma utilização da luz própria à pintura barroca fazem da direção de fotografia uma arte de fazer ver.
Resumo expandido
- O enigmático filme A Erva do Rato (2008), de Júlio Bressane, desloca a atenção que seria dada principalmente aos personagens para o protagonismo da luz como elemento metafórico na narrativa. Com isso, o complexo tema do desejo assume diversas configurações relacionadas à direção de fotografia – configurações essas inexatas, pois o cinema de Bressane trabalha muito mais com insinuações do que com certezas. Atmosfera obscura, sombras e outros duplos (reflexos no espelho, silhuetas e fotografias) guiam o espectador em um jogo de evasiva cumplicidade em torno de um casal. Se a relação sexual entre os dois jamais se consuma, a maneira como o diretor de fotografia Walter Carvalho trabalha com a luz remete aos intrincados mecanismos do desejo. Além de sombras, silhuetas e reflexos, também a fotografia still comparece como mais um elemento do enredo. O casal jamais se toca mas estabelece certa intimidade quando o homem fotografa a mulher e, em meio a sombras ambulantes, eles atuam em papeis de voyeur ou exibicionista, lidam com a abjeção, ou lidam com o prazer, pela sedução.
Assim como a fotografia still, a referência à pintura nesse filme reforça o intuito de dramatizar a própria percepção. Se por um lado o ato de fotografar é inúmeras vezes encenado para situar o casal no jogo do desejo, por outro lado, o uso do chiaroscuro ou referências à natureza morta remetem a estratégias próprias da pintura Barroca. Essa luz revela uma sensualidade dos corpos e, seguindo a tradição Barroca, também investe as cenas de uma carga emocional. Reconhecemos referências a pinturas, o que termina por colocar o espectador em estado de contemplação acentuando a sua condição também de voyeur. Como veremos, esse labirinto de espelhos que identifica fotógrafo e espectador é reforçado por alguns enquadramentos.
Na verdade, o filme é todo conduzido por um jogo de duplos no qual a luz tem importância fundamental. Ela cria tanto a penumbra que insinua corpos como cria sombras ambulantes que povoam o filme tanto ou até mais do que a figura dos atores em movimento. Portanto, a penumbra e as sombras terminam sugerindo elementos que compõem o desejo: o voyeur está com o olho atrás do visor da câmera, mas ele também é sombra projetada na parede; o rato vira uma espécie de fantasma com conotações que oscilam entre o desejo e a abjeção – não por acaso, ela vira diversas vezes sombra projetada na parede ou no corpo da mulher desejada pelo fotógrafo; enfim, rato e voyeur se fundem em uma mesma sombra em uma das cenas. A mobília é ela mesma projetada em sombras indicando que o mundo concreto conduz também a um mundo impalpável de reflexos. Igual função tem a penumbra: ela cria uma atmosfera que remete a uma segunda realidade em plena (obscura) luz do dia. Esse mundo quase invisível que a pouca luz recria é enfim o mundo das pulsões que conduz o estranho comportamento dos personagens plenos de (obscuro) desejo.
Por fim, podemos falar ainda de um outro duplo implícito a esse filme, pois se trata de uma adaptação livre de dois contos do Machado de Assis. Alguns elementos remetem a esses contos: a presença crucial do rato e do esqueleto, ambos se referindo à morte, e, principalmente, o sadismo do personagem masculino frente à mulher amada. Uma diferença, porém, é fundamental: as mulheres passivas de Machado de Assis transformam-se em uma personagem mais lasciva no filme. O rato interage com ela e é investido de muito mais sentidos e ambiguidades. Ele revela, em última instância, estratégias peculiares ao cineasta, já que Bressane gosta de trabalhar com elementos polissêmicos típicos de uma linguagem mais poética. Por isso, enfim, que a luz nesse filme funciona de maneira tão expressiva: ela diminui a visibilidade das coisas concretas para conduzir a um território de sentidos múltiplos. De certa forma, o rebaixamento da luz permite que se saia , portanto, do território das denotações e se alcance o reino das conotações fundado, nesse caso, pela função poética da sombra.
Bibliografia
- ALLONES, Fabrice Revault d’. La luz en el cine. Madrid: Cátedra, 2008.
AUMONT, Jacques. O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo: Cosac & Naify, 2011.
KRISTEVA, Julia. Powers of horror: an essay on abjection.. New York: Columbia University Press, 1982.
LOISELEUX, Jacques. La luz en el cine: cómo se ilumina con palavras; cómo se escribe con la luz. Barcelona: Paidós, 2005.
ORIENTE, Fernando. ‘A Erva do Rato’ e um pouco sobre o cinema de Julio Bressane. Tudo vai bem. Disponível em: Acesso em: 4 maio 2018.
PEIXOTO, Nelson Brissac. As imagens e o outro. In: NOVAES, Adauto (Org.). O Desejo. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
STOICHITA, Victor. Breve história da sombra. Lisboa: KKYM, 2016.
XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema. In: PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Senac; Instituto Itaú Cultural, 2003.