Ficha do Proponente
Proponente
- KENIA CARDOSO VILACA DE FREITAS (UNESP)
Minicurrículo
- Pós-doutoranda em Comunicação da Universidade Estadual Paulista/Unesp. Doutora em Comunicação pela UFRJ. Mestre em Multimeios pela Unicamp. Formada em Comunicação Social na Ufes. Realizou a curadoria das mostras “Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica” (2015/ Caixa Belas Artes/SP), “A Magia da Mulher Negra” (2017/Sesc Belenzinho/SP) e “Diretoras Negras no Cinema Brasileiro” (2017/Caixa Cultural/DF e RJ). Escreve críticas para o site Multiplot! Integra o Coletivo Elviras.
Ficha do Trabalho
Título
- Sankofa: Afrofuturismo, diáspora negra e temporalidade
Seminário
- Cinema Negro africano e diaspórico – Narrativas e representações
Resumo
- A partir de uma análise do filme “Sankofa” (1993) de Haile Gerima esta comunicação se propõe a pensar a utilização do recurso da viagem temporal nas narrativas fílmicas negras. No filme de Gerima, a protagonista Mona é transportada dos anos 1990 para o passado em uma fazenda escravocrata do sul dos EUA. A partir dessa viagem temporal. Mona é confrontada com seus traumas históricos individuais e coletivos. A discussão será feita com suporte do campo estético e político do afrofuturismo.
Resumo expandido
- “Sankofa” (1993) filme de Haile Gerima acompanha a história de Mona, uma modelo negra dos EUA dos anos 1990 que está fazendo uma gravação em Gana. Em uma filmagem no castelo de Cape Coast (historicamente um local utilizado pelo comércio de escravizados), Mona é transportada para o passado, indo parar em uma fazenda de plantation no sul dos EUA – onde passa a viver como escravizada toda a violência e o abuso do período e também os processos de revolta e resistência. A palavra “sankofa” vem do povo Akan de Gana e pode ser traduzida como “voltar e pegar” e está tradicionalmente ligada ao provérbio “não é errado voltar para o que se esqueceu”.
A partir desse provérbio, Em “Sankofa” o recurso narrativo da ficçao especultativa da viagem temporal reconstrói um arco de enraizamento entre Mona e as suas origens históricas africanas, até então submersos para a personagens. A partir deste recurso nos propomos a questionar nesta comunicação a temporalidade em curto-circuito, o amálgama entre passado, presente e futuro, do qual o filme se utiliza. E como este elemento narrativo central inscreve o filme no campo estético e político do afrofuturismo. Entendendo o afrofuturismo como: “uma reelaboração total do passado e uma especulação do futuro repleta de críticas culturais” (Womack, 2013, p. 30) e/ou uma forma de narrar o presente de maneira fabulosa. Sendo o campo afrofuturista uma junção da experiência negra pensada a partir das lentes das ficções especulativas. Retomando Womack, podemos dizer que o afrofuturismo é uma “interseção entre a imaginação, a tecnologia, o futuro e a liberação” (idem).
A partir de uma perspectiva afrofuturista, podemos dizer que as populações negras em diáspora pós-escravidão são as descendentes diretas de alienígenas sequestrados, levados de uma cultura para outra. Os seus antepassados, separados dos seus territórios originais, foram abduzidos como escravizados para o Novo Mundo. Na(s) América(s) e na Europa, passaram por um processo constante de apagamento das raízes – separados de parentes ou de pessoas da mesma comunidade, impossibilitados de falarem as próprias línguas, com os corpos encarcerados impedidos de seguirem as suas tradições culturais. “Sankofa” reencena esse trauma a partir da viagem temporal de Mona.
A comparação do processo de escravização da população africana com a construção de uma narrativa de ficção científica extraterrestre não deixa de ser brutal, potente e, ao mesmo tempo, uma forma de provocação – visto que tão poucos negros e negras protagonizam (como criadores e/ou personagens) o universo das fantasias futurísticas. Por isso, acessar ao universo narrativo das obras afrofuturistas é lidar concomitantemente com a sua dupla natureza: a da criação artística que une a discussão racial ao universo do sci-fi e a da própria experiência da população negra como uma ficção absurda do cotidiano. Mais do que previsões e premonições do futuro, as narrativas de ficção-científica são formas especulativas de pensar o presente. Kodwo Eshun traduz essa ideia em uma frase precisa: “A existência negra e a ficção-científica são a mesma coisa” (ESHUN, 2003, p. 298, Tradução livre).
A diáspora negra extraterrestre dentro de nossos próprios mundos induziu o surgimento de um duplo trauma: o da escravidão (no passado) e o da perseguição, especialmente da violência estatal (no presente). Trauma individual e coletivo e correlacionado. Nesse contexto, levantamos a hipótese de que o cinema negro e futurista emerge como um fragmento narrativo de memórias coletivas e individuais que nunca comporão um discurso totalizante – porque sobrevive, desde sua origem mais distante, como uma reminiscência de milhões de histórias excluídas.
Quais seriam então no cinema negro os caminhos narrativos para a criação desses futuros e passados inexistentes? E o afrofuturismo pode ser considerado a estética destas narrativas? Essas são algumas das questões que tentaremos investigar a partir do filme de Haile Gerima.
Bibliografia
- DELANY, S. R. The necessity of tomorrows. In: Starboard Wine: more notes on the language of science fiction. New York: Dragon Press, 1983.
DERY, M. “Black to the future: interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate and Tricia Rose”. In: Flame Wars: the discourse of cyberculture. Durham, NC: Duke University Press, 1994.
ESHUN, K. More Brilliant Than the Sun: Adventures in Sonic Fiction. London: Quartet Books, 1998.
FREITAS, K (org.). Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica. São Paulo, Catálogo Caixa Cultural: Novembro, 2015.
FREITAS, K. “Roubando Dados: a refundação do Afrofuturismo em O Último Anjo da História”. In: MURARI, L.; SOMBRA, R. (orgs). O Cinema de Akomfrah: espectros da diáspora. Rio de Janeiro: LDC, 2017.
THOMAS, S. R. (ed.). Dark Matters: A Century of Speculative Fiction from the African Diaspora/ Aspect, New York, 2000.
WOMACK, Y. Afrofuturism: The world of black sci-fi and fantasy culture. Chicago: Lawrence Hill Books, 2013.