Ficha do Proponente
Proponente
- Ana Costa Ribeiro (UERJ)
Minicurrículo
- Doutora em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ, MFA em Cinema pela San Francisco State University e bacharel em Comunicação Social pela UFRJ. Seus filmes foram exibidos no Brasil, na Holanda, na Alemanha, na Espanha, na Índia e nos EUA e seus textos foram publicados no Brasil e em Portugal. Dirigiu 7 curtas-metragens e 4 séries documentais. É professora de processo criativo há dez anos. Em 2018, realizou sua primeira exposição individual e atualmente desenvolve seu primeiro longa-metragem.
Ficha do Trabalho
Título
- OS CORPOS E O TEMPO EM ULYSSE, DE AGNÈS VARDA
Resumo
- O trabalho investiga as dinâmicas entre corpo e tempo através das múltiplas formas de relação que se pode estabelecer com a memória. Com base no pensamento de Jeanne-Marie Gagnebin, nas pegadas de Walter Benjamin, analisamos a narrativa do filme Ulysse, de Agnès Varda. O texto aborda questões como memória e esquecimento; memória voluntária e involuntária; memória e lembrança.
Resumo expandido
- Não há dúvidas, o menino Ulysse do filme de Agnès Varda, assim como o título do filme e da fotografia que lhe inspirou – mesmo lhes faltando um “s” – teriam sido, não por acaso, homenagens ao herói da Odisseia, de Homero. No entanto, o Ulysse de Varda difere totalmente do Ulysses de Homero. Mas é interessante notar de que forma o filme estabelece uma relação com a narrativa épica. Ambos se desenvolvem a partir do trabalho da rememoração de Penélope, isto é, do impulso de construir uma narrativa como se confecciona um tecido, formado tanto por lembranças como por esquecimentos. Segundo Walter Benjamin, “O importante para o autor que lembra não é o que ele viveu mas o tecido de sua lembrança, o trabalho de Penélope da rememoração.”
Tanto no filme quanto na narrativa épica, importa tanto o que se lembra quanto o que se esquece. E é justamente através da costura entre o lembrar e o esquecer que Varda constrói seu filme. A realizadora escreve sua memória como Penélope tece seu véu. Segundo a filósofa Jeanne Marie Gagnebin, “O véu de Penélope é obra conjunta do tecer e do desmanchar, como o texto é a trama do lembrar e do esquecer.”
Para Walter Benjamin, nas pegadas de Nietzsche, o trabalho da rememoração se configura como uma tessitura entre o lembrar e o esquecer, onde a trama estaria para o lembrar assim como a urdidura, para o esquecer. É esse caráter paradoxal da memória, simultaneamente ativo e passivo, que faz com que se possa construir as narrativas.
Consciente dessa dinâmica, Agnès Varda retorna a uma única imagem – uma fotografia em preto & branco que realizara em 1954 – como uma arqueóloga, escavando todas as narrativas possíveis sobre aquela cena. Assim, busca tanto as lembranças, quanto os esquecimentos; tanto as memórias voluntárias, quanto as involuntárias; tanto as ações intencionais de construção da memória, quanto as operações do acaso das lembranças. Pois sabe que é através dessa trama que se pode escrever a memória dos corpos que aparecem na cena. Como defende Jacques Rancière, “O escritor é o geólogo ou arqueólogo que viaja pelos labirintos do mundo social e, mais tarde, pelos labirintos do eu. Ele recolhe os vestígios, exuma os fósseis, transcreve os signos que dão testemunho de um mundo e escrevem uma história.”
Um homem nu, de costas, olha para o mar. Um menino nu, sentado sobre os cascalhos de uma praia, olha para trás. Uma cabra morta, caída no chão, não olha para ninguém. São esses os três corpos que aparecem na imagem principal do filme Ulysse, de Agnès Varda. Ulysse é um filme sobre uma fotografia, sobre uma única imagem em preto & branco realizada por Agnès Varda em maio de 1954. Mas Ulysse é também um filme sobre a memória. Sobre a memória dessa fotografia. Sobre a memória de cada um dos corpos envolvidos nessa fotografia. Sobre a relação entre corpo e memória.
A realizadora constrói um filme que investiga os detalhes de uma única imagem, pois sabe que o artista é capaz de criar mundos a partir de vestígios, e que quase tudo interessa o narrador que quer contar suas memórias, se houver espectadores a fim de escutá-las.
A partir do trabalho de rememoração que se pode fazer em um filme, por meio de sua própria memória e da memória dos corpos envolvidos na cena, Varda faz uso de diferentes formas de se aproximar do passado, refletindo sobre apenas uma imagem. Como diria Godard: “C’est n’est pas une image juste. C’est juste une image.”
Bibliografia
- GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar Escrever Esquecer. São Paulo: Editora 34,
2014.
______________________. Limiar, Aura e Rememoração – ensaios sobre Walter
Benjamin. São Paulo: Editora 34, 2014.
HOMERO. Odisseia. São Paulo: Ed. Abril, 1978.
PROUST, Marcel. Em Busca do Tempo Perdido. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
RANCIÈRE, Jacques. O inconsciente estético. São Paulo: Editora 34, 2009.
ROLNIK, Suely. “Pensamento, corpo e devir” in: Núcleo de Estudos da
Subjetividade. São Paulo: PUC, 1993.
YATES, Frances A. A Arte da Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.